19/10/11

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No DSM IV, manual internacional de classificação das doenças mentais, não encontramos a perversão narcísica entre as doenças da personalidade. Considera-se apenas aí as perversões sexuais, na rubrica das perturbações sexuais, ou nas perturbações da personalidade.
A personalidade narcísica é descrita do seguinte modo ( e tem de apresentar pelo menos cinco das manifestações que se seguem):
- o indivíduo tem uma convicção grandiosa da sua importância própria,
- está absorvido por fantasias de sucesso ilimitado, de poder,
- pensa ser "especial" e único,
- tem uma excessiva necessidade de ser admirado,
- pensa que tudo lhe é devido,
- explora o outro ao nível das relações interpessoais,
- falta de empatia,
- inveja com frequência os outros,
- assume atitudes e comportamentos arrogantes.
A descrição feita por Otto Kernberg, em 1975, da patologia narcísica está muito próxima daquela que actualmente se toma como perversão narcísica: " As principais características destas personalidades narcísicas são um sentimento de grandeza, um egocentrismo extremo, uma ausência total de empatia pelos outros, apesar de serem ávidos de obter a admiração e aprovação deles. Estes pacientes sentem uma inveja muito intensa relativamente àqueles que eles julgam possuir coisas que eles não têm ou que, simplesmente, parecem tirar prazer das suas vidas. A estes indivíduos não só falta profundidade afectiva como não chegam nunca a compreender as emoções complexas dos outros, e os seus sentimentos, não sendo modelados, conhecem rápidas erupções logo seguidas de dispersão. Eles ignoram, especificamente, os verdadeiros sentimentos de tristeza e de pesar; esta incapacidade para experienciar reações depressivas é um traço fundamental da sua personalidade. Quando se sentem abandonados ou decepcionados, podem mostrar-se aparentemente deprimidos, mas ante uma análise atenta, percebemos tratar-se de cólera ou de ressentimento com desejos de vingança e não de uma verdadeira tristeza pela perda de uma pessoa que eles apreciavam."
Um Narciso, no sentido do Narciso de Ovídio, é alguém que acredita encontrar-se olhando-se ao espelho. A sua vida consiste na procura do seu reflexo no olhar dos outros. O outro não existe enquanto sujeito mas apenas enquanto espelho. Um Narciso é uma casca vazia que não tem existência própria; é um "pseudo", que procura provocar ilusões para mascarar o seu vazio. O seu destino é uma tentativa para evitar a morte. É alguém que jamais foi reconhecido como ser humano e que foi forçado a construir um jogo de espelhos para conceder a si próprio a ilusão de existir. Como um caleidoscópio, esse jogo de espelhos tende a repetir-se e a multiplicar-se: este indivíduo permanece edificado sobre o vazio.
O Narciso, não tendo substância, vai-se "debruçar" sobre o outro e, como uma sanguessuga, tenta aspirar a vida deste. Sendo incapaz de uma verdadeira relação, ele apenas a pode levar a cabo num registo "perverso", de malignidade destrutiva. Incontestavelmente, os perversos sentem um gozo extremo, vital, ante o sofrimento e as dúvidas do outro, assim como sentem um prazer intenso em subjugar e humilhar.
Tudo se inicia e se explica pelo Narciso vazio, construção em reflexo, no lugar de si-próprio e nada no interior, tal como um robot foi feito para imitar a vida, ter todas as aparências e sucessos da vida, mas sem essa mesma vida. O seu desregramento sexual e a sua maldade não são mais do que consequências inelutáveis desta estrutura vazia. Como os vampiros, o Narciso vazio tem necessidade de se alimentar da substância do outro. Como não tem vida, ele tem de a sugar onde ela existe ou, se isso for impossível, de a destruir para que não haja vida em lugar algum.
(...) Daí a sensação que têm as vítimas de lhes ter sido negada a sua individualidade. A vítima não é um sujeito-outro, mas apenas um reflexo. Tudo o que possa colocar em questão este sistema de espelhos que mascaram o vazio, apenas pode desencadear uma reação em cadeia de furor destrutivo. Os perversos narcísicos não passam de máquinas de reflexos que buscam em vão a sua própria imagem no espelho que é os outros.
Eles são insensíveis, sem afecto. Como poderia uma máquina de reflexos ser sensível? Por conseguinte, são incapazes de sofrimento. Sofrer pressupõe ser de carne e osso, ter uma existência. Eles não têm história já que são coisas ausentes e apenas os seres presentes no mundo podem possuir uma história (...).
Os perversos narcísicos são indivíduos megalómanos que se colocam como referentes, como medida do bem e do mal, da verdade. Encenam, frequentemente, um ar moralizador, superior, distante. Mesmo quando não dizem nada (...) eles traduzem a malevolência humana.
Apresentam uma ausência total de interesse e empatia pelos outros, contudo desejam que esses outros se interessem por eles. Tudo lhes é devido! Criticam toda a gente e não admitem nenhuma reprovação nem nenhum pôr em causa. (...) Apontar as falhas dos outros é um modo de não ver as suas, de se defender contra uma angústia da ordem do psicótico.
Os perversos estabelecem uma relação com os outros para os seduzir. São descritos, geralmente, como pessoas sedutoras e brilhantes. Uma vez apanhado o peixe, basta apenas mantê-lo na distância necessária (...).
A sedução perversa não comporta nenhuma afectividade, pois o próprio princípio do funcionamento perverso é de evitar todo e qualquer afecto (...) A força dos perverso vem-lhe da sua insensibilidade. Eles não conhecem nenhum escrúpulo de ordem moral. Jamais sofrem. Atacam com toda a impunidade (...)
Os perversos podem apaixonar-se por uma pessoa, uma actividade ou ideia, mas esse flamejar é sempre superficial, já que ignoram os verdadeiros sentimentos (...) A eficácia dos seus ataques deve-se ao facto que tanto a vítima como um observador exterior jamais imaginar que se possa ser a tal ponto desprovido de solicitude ou de compaixão frente ao sofrimento do outro.
(...) Os perversos alimentam-se da energia daqueles que sofrem o seu charme (...). Sendo incapazes de amar, eles tentam destruir, através do seu cinismo, a simplicidade de uma relação natural.
Para se aceitarem, os perversos narcísicos têm de triunfar e destruir qualquer um que julguem superior. Alegram-se com o sofrimento alheio. Para se afirmarem, precisam de destruir.
Há neles uma exacerbaçao da função crítica que faz com que passem a vida criticar tudo e todos. Assim, eles conservam a sua omnipotência: " Se os outros são nulos, eu sou forçosamente melhor do que eles!"
(...) A inveja é neles um sentimento de cobiça, de irritação odienta frente à felicidade ou às vantagens do outro. Trata-se de uma mentalidade, de conjunto, agressiva que se fundamenta na percepção daquilo que o outro possui e de que ele é desprovido. Esta percepção é subjectiva e pode mesmo ser delirante.
(...) Eles impõem aos outros a sua visão pejorativa do mundo e a sua insatisfação crónica relativamente à vida. Destroiem todo o entusiasmo à volta deles, procuram sobretudo demonstrar que o mundo não presta, que os outros são maus e que o parceiro(a) é igualmente mau.(...) É por isso que procuram, com frequência, as sua vítimas no seio dos que possuem bastante energia e/ou que têm gosto pela vida(...)
Os perversos agridem o outro para sairem da condição de vítima que experienciaram na infância. (...) Aquando das rupturas, os perversos colocam-se na situação de vítimas abandonadas, o que lhes concede um belo papel e lhes permite seduzir um outro parceiro, consolador.
(...) Atirar com a falha para cima do outro, difamá-lo fazendo-o passar por mau, permite-lhe não só fazer a catarse, mas também autobranquear-se: se não são responsáveis, não são culpados, logo, tudo o que corre mal é culpa do outro! Defendem-se assim através de mecanismos de projecção: atirar para cima do outro todas as dificuldades e todos os fracassos sem se colocarem a si próprios em causa. Defendem-se igualmente pelo princípio de negação da realidade. Escamoteiam a dor psíquica que transformam em negatividade (...) O sofrimento é excluído, a dúvida igualmente. Devem, portanto, ser suportados pelos outros e agredi-los é assim o meio de evitar a dor, o pesar, a depressão.
(...) Os perversos narcísicos tendem a apresentar-se como moralizadores: dão lições de rectidão aos outros, e nisto aproximam-se das personalidades paranóicas.
A personalidade paranóica caracteriza-se por:
- hipertrofia do eu: orgulho, sentimento de superioridade;
- psicorrigidez: obstinação, intolerância, racionalidade fria, dificuldade em demonstrar as emoções positivas, desprezo pelo outro;
- desconfiança: temor exagerado da agressividade do outro, sentimento de ser vítima da malevolência do outro, ciúme, suspeição;
- inexactidão do juízo: interpreta os acontecimentos neutros como sendo dirigidos a ela.
Contudo, diferentemente do paranóico, o perverso, quando conhece bem as leis e as regras da vida em sociedade, joga-as bem para melhor as contornar, e com júbilo. O específico do perverso é a desconfiança dessas mesmas regras, o seu objectivo é derrotar o interlocutor (...).
O alcançar do poder dos paranóicos é feito através da força ao passo que o dos perversos faz-se pela sedução - mas quando a sedução não funciona mais, eles podem recorrer à força. A fase da violência é ela própria um processo de descompensação paranóico: o outro deve ser destruido porque é perigoso, portanto, urge atacar antes de ser ele mesmo atacado.
(...) O mundo deles está dividido em bom e mau. Projectar tudo o que é mau sobre qualquer um permite-lhes estar melhor na vida e assegura-lhes uma relativa estabilidade. Porque no fundo se sentem impotentes, os perversos temem a omnipotência que imaginam nos outros. Neste registo quase delirante, desconfiam desses outros, atribuem-lhes uma maldade que não é mais do uma projecção da sua própria maldade.
(...) não é raro que os perversos tentem recolher a aprovação tácita de testemunhas que eles, antes, tinham já desestabilizado e mais ou menos convencido.
O próprio de um ataque perverso é de visar as partes vulneráveis do outro, no local onde exista uma falha ou uma patologia. Cada um de nós apresenta um ponto fraco que se transforma para o perverso num ponto de atrelagem (...). Eles têm uma intuição enorme para os pontos fracos dos outros, já que é exactamente aí que estes podem ser magoados e destruidos.

  Marie-France Hirigoyen in " Le harcèlement moral, la violence perverse au quotidien ",
Éditions La Découverte et Syros, Paris, 1998, pp 152 - 167 (1).
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(1) Tradução minha feita em simultâneo e que se preocupou apenas com o rigor científico, não com a literariedade do texto!!!
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