23/04/12

"enquanto se colam nos lábios dos ditadores/ mecanismos com espelhos para darem a ilusão do diálogo,"

( Vejo passar gente monstruosa através
da montra do café. Pesadelo.)

 

Alguns destes monstros
já nasceram como os vejo de mordaças de pano cru,
açames de gelo,
simulacro de dentes com fome a sorrir (chora-se melhor assim),
silêncio por fora das palavras
de que ninguém já sabe o sentido
sem desterro.

Outros entraram nas escolas
de bocas ainda livres
- mas logo corriam os senhores professores com agulhas enfiadas de treva
a coserem-lhes os lábios
com teias de aranha.
E ai de quem não desaprendesse
que os números têm a cor misteriosa dos dedos
- e fechem por favor as crianças nos quartos às escuras,
ensinem-nas a sonhar
a instrução primária dos cárceres
(contanto que não sonhem alto).
Os mais velhos,
esses operam-se,
substituem-se-lhes as cordas vocais por guitarras de açúcar ardente,
enquanto se colam nos lábios dos ditadores
mecanismos com espelhos para darem a ilusão do diálogo,
e pequenos aparelhos transparentes de repetir ecos.

Outras vezes encosto-me
à porta do café
à espera do Carlos ou do Fafe
contente de haver raparigas luminosas nos intervalos,
todas tão ágeis nas suas mordaças de cetim implácido,
tules de voos mentais,
filtros de véus de mel
a cheirarem tão bem a palavras lúcidas
atravessadas de risos e saliva.

De vez em quando
apetece-me quebrar os vidros do café
e perguntar aos monstros
(por gestos, visto as próprias palavras já serem mordaças):
como conseguem comer
com dentes de algodão em rama?
E onde aprenderam a sorrir assim
com as gengivas forradas de sedas de punhal
e arame farpado nos bocejos?
- como se as mordaças tornassem o mundo mais azul
e as línguas beijassem melhor
fechadas em redomas de cristal.
Agora só falta amordaçar o resto,
o vento, os pássaros, as fontes, os vulcões, o fogo,
as maçãs, os oboés, os tufões,
a desordem do sonho.

A desordem, sim. Porque a desordem já começou - informam os jornais
com alarde de tinta inquieta.
A desordem que vai destruir os tijolos do sono
nesta cidade
edificada com perfumes mortos
e materiais de luz
por arquitectos que usam principalmente a argamassa do sol
traçada de céu vivo
na construção de cofres subterrâneos dos Bancos Loucos
onde os poetas guardam o ouro das nuvens dos poentes
para as reformas na velhice.

Sim. Garantem-me e eu confirmo,
graças aos sinais secretos que aprendi para furar as mordaças
( ai dos poetas que não rasgam mordaças nem pedras!)
que já começou a desordem.

Mas uma desordem tão compassada e grave
que, pela primeira vez, não me apetece gritar
com os outros,
os que só agoram reparam nas mordaças
e deixaram de ouvir
os violinos de viverem mortos,
como quem pede desculpa de haver relâmpagos e trovões
- a falsa linguagem dos gigantes das alturas
que faz tremer o mundo
quando se torna humana.

Mas não assim, nas bocas cerradas à força com adesivos
destes pobres anões montados em sombras de burros espectrais
que apodrecem amordaçadamente dos cascos às crinas
e mesmo quando zurram não arreganham os dentes
para acordar o marasmo do pântano
onde os combates continuam e continuarão até à última caveira do Sol,
- só com furor de ecos
em busca de lâminas
nas manhãs desistentes.

  Ferreira, José Gomes. Obras de José Gomes Ferreira - Poeta Militante, 3º Vol. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1998, pp 52 - 55.
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