Não muito tempo depois da sua chegada ao Grand-Hôtel de Cabourg, em Agosto de 1912, Proust aceitou um convite de Charles d'Alton para estar presente no jantar e baile anuais do clube de golfe, que muitos consideravam o acontecimento social mais elevado da época estival da Normandia. No dia do baile, Proust vestiu-se e saiu para o passeio da marginal onde, entre as seis e as sete, se deveria encontrar com Nahmias, que regressava de Deauville. Proust esperou durante bastante tempo, mas o jovem nunca apareceu.
Furioso com Nahmias por o ter deixado à espera, Proust regressa ao hotel. Quando o ciúme despontava, Proust mostrava muitas vezes uma possessividade tão dominadora e irracional como a de Swann e a do Narrador nos seus piores momentos. O escritor dirigiu a sua fúria ao jovem inconsciente, começando a escrever uma carta longa e altamente crítica, dizendo-lhe que um pequeno acontecimento como a sua falha em comparecer ao encontro podia assumir uma grande importância para alguém de fraca saúde (...)
Proust tinha feito a pior escolha possível de palavras. Nahmias, que nessa altura já conhecia bem Proust, tinha de facto, voltado a toda a pressa de Deauville, uma decisão que se viria a revelar desastrosa. Durante o caminho para chegar a tempo ao encontro com o romancista, o carro de Nahmias atropelou uma rapariguinha, matando-a. Desconhecedor destes trágicos acontecimentos, Proust pôs a carta de lado para comparecer no jantar de gala. Depois da festa, ainda enraivecido por causa da ausência de Nahmias, Proust retomou a escrita da carta e terminou a sua acusação contra o jovem irresponsável (...).
Ao admoestar Nahmias, Proust usou uma linguagem semelhante àquela utilizada por Swann e Charlus quando enfurecidos. Os "muito profundos e genuínos sentimentos de amizade" que ele tinha por Nahmias obrigavam-no a observar que o seu jovem amigo "não era perfeito. Nem sequer és feito de uma pedra que possa ser esculpida quando tem a sorte de aparecer a um escultor (e podes perfeitamente encontrar melhores escultores do que eu, embora eu o tivesse feito com ternura); és feito de água, vulgar, impalpável, sem cor, fluída, eternamente insubstancial, correndo infinitamente para longe". Swann utiliza imagens semelhantes e igualmente diminutivas para punir Odette numa situação análoga: "Tu és uma água sem forma que correrá por qualquer inclinação que se lhe ofereça, um peixe desprovido de memória, incapaz de pensar, que toda a sua vida no aquário continuará a colidir cem vezes por dia com a parede do vidro, confundindo-a sempre com a água." Uma observação feita no final da carta sugere que Proust já tinha concebido a famosa cena em que a mais velha amiga de Swann, a duquesa de Guermantes, estando atrasada para um jantar, não tem tempo para o escutar, embora ele tenha, por insistência dela, acabado de lhe revelar que tem uma doença terminal e que morrerá em breve. "Um dia", escreveu Proust a Nahmias, "descreverei essas personagens que, mesmo de um ponto de vista vulgar, nunca compreenderão a elegância, quando uma pessoa está vestida e pronta para um baile, de desistirem dele de forma a fazerem companhia a um amigo."(in No Caminho de Swann 1:412. Cf. O lado de Guermantes 3: 816-19)
Reconhecemos ecos do mesmo veneno de Proust numa outra passagem, quando Charlus repreende o Narrador por ter falhado um teste anterior para corresponder às expectativas da favorável opinião inicial que o barão tinha dele: "Podes dizer que encontraste inesperadamente uma amizade de primeira categoria, e que a estragaste." ( Cf. Corr. 8: 208). Tais explosões eram muitas vezes baseadas no próprio mau feitio de Proust: a sua destruição do chapéu de Bertrand de Fénelon foi transformada no estrago provocado pelo Narrador a um chapéu de Charlus, que havia feito uma proposta semelhante à que Proust fizera a Nahmias de o esculpir numa pessoa melhor ( Cf. O lado de Guermantes 3: 758-69 ). Em Deauville, naquela noite em que Nahmias não apareceu, estava muito mais em jogo do que um chapéu novo. Quando Proust soube que o carro de Nahmias, na pressa de chegar a tempo, tinha matado uma criança, sentiu-se envergonhado.
Carter, William C. As paixões de Proust. Lisboa: Nova Vega, 2009, pp 129 - 131.
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