16/04/09

FERNANDA DE CASTRO, um afectuoso olhar sobre o quotidiano...

"Haute Couture" foto, do ciclo "Rêves et Désirs", de autoria de Gilles de Beauchêne.


"O Saco de Retalhos"

Velho saco, onde estavas? No baú
das coisas mortas,
esquecidas como tu?
Guardado na gaveta
como as sedas, as cassas,
os ramos de violeta,
a poeira e as traças?

Velho saco, onde estavas? Pendurado
numa daquelas portas
que um dia se fecharam
sobre a infância, o passado,
e nunca mais se abriram?

Ou no sótão,
na trouxa dos farrapos,
misturado com os trapos?

Velho saco dos tempos esquecidos,
nos teus retalhos desbotados
reconheço os meus bibes,
as chitas e os percais dos meus vestidos.

Estes velhos riscados
foram saias, corpetes, aventais
de criadas que então eram meninas.
E estas cambraias, estas sedas finas,
usou-as minha mãe.

Ó velho saco, feito de retalhos,
rever-te fez-me bem.
Este linho desfeito, remendado,
foi lencol de noivado,
e quantas vezes te vi pôr na cama,
ó minha ama,
esta chita vermelha de ramagens.
Meu velho saco, meu livro de imagens,
rever-te fez-me bem.

Não sei, porém,
que travo amargo esta alegria tem,
que tristeza me fez, que nostalgia,
ver surgir na distância
a minha infância,
descosida, em farrapos,
e reencontrar a minha mocidade
remendada e puída
numa saca de trapos.

Ó saco, ó velho saco de farrapos,
já não sei, afinal,
se ver-te me fez bem ou me fez mal.

Fernanda de Castro In "70 Anos de Poesia", Fundação Eng. António de Almeida,
Agosto, 1989, págs. 126-127.
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