10/04/09

Foto tirada, em péssimas condições, no Casino do Estoril em 2007, quando
o Miguel Real recebeu o "Prémio Fernando Namora". Da esquerda para a
direita: Ana Paula Dias, Victor Oliveira Mateus, Miguel Real, Teresa Oliveira
e Henrique Levy.


In "J.L." de 21/4/2009:
As características literárias fundamentais presentes na narrativa Cisne de África, primeiro romance de Henrique Levy, autor já conhecido pelo romantismo sagrado dos seus dois livros de poesia (Mãos Navegadas e Intensidades), encontram-se expressas no lúcido prefácio de Inocência Mata, professora da Faculdade de Letras de Lisboa. Neste sentido, reenviamos o leitor para a caracterização geral deste romance feita por Inocência Mata, ensaiando aqui, no JL, uma abordagem diferente, ada sua integração na tradição literária portuguesa.
Com efeito, a leitura de o Cisne de África suscita-nos a suspeita de ser Henrique Levy, na continuidade de Mário Cláudio, Vasco Graça Moura, Bento da Cruz e, de certo modo, A.M.Pires Cabral, um perfeito novelista camiliano. De facto, aplicada ao tempo da Guerra do Ultramar (1961-1974) e aso espaço colonial Português (Moçambique, Lago Niassa e Lourenço Marques), Henrique Levy desenvolve uma narrativa que prolonga e actualiza - indubitavelmente-, em quatro pontos, a técnica narrativa de Camilo Castelo Branco.
Primeiro: uma história de amor trágica. Maria Helena, lisboeta, abandonada no altar pelo noivo espanhol, parte para Moçambique como enfermeira para refazer a sua vida: aqui, em Massicoonono, aldeia indígena do lago Niassa, fronteira com o Malawwi, assumindo uma vida dupla - de dia socorrendo os soldados portugueses; de noite, os combatentes da Frelimo-, apaixona-se por Raimundo Ndahala, comandante dos "terroristas".
Segundo: a narração do triângulo amoroso como figura de tragédia. Entre o amor de Maria Helena e Raimundo Ndhala instala-se o ciúme maligno de Eponine Kathipe, negra, ajudante de Maria Helena na enfermaria militar, espiã da Frelimo no aquartelamento português; Epoline encontra-se igualmente apaixonada por Raimundo Ndhala e, constatando a união entre os dois amantes, desencadeia uma intriga maligna (os militares e a PIDE já saberiam da ajuda de Maria Helena aos combatentes da Frelimo e preparar-se-iam para a prender) que os separa definitivamente (Maria Helena é forçada a fugir para Lourenço Marques, presumindo receber ordens directas de Raimundo).
Terceiro: envolvimento social da narrativa amorosa. Tal como Camilo, Henrique Levy envolve o coração amoroso na história de um conjunto de relações sociais que prestam consistência histórica ao drama romântrico do amor ( C. C. Branco: consequências da guerra civil entre Liberais e Absolutistas; fidelidades de província a D. Miguel ou a D. Pedro IV; intrigas e conflitos entre liberais, entre tradicionalismo português e modernismo industrial...; H. Levy: Guerra do Ultramar, relações com as mulheres da aldeia de Massiconono, especialmente Juliana, mulher-sábia, guardiã das tradições; relações com os agentes da PIDE, com o dr. Rodrigo Noronha, médico militar; vida em Lourenço Marques ao longo da década de 1960...); do mesmo modo, o desenlace trágico é anunciado pelo absoluto ódio (guerra) entre os grupos sociais a que pertence
de raiz cada um dos amantes: brancos contra negros, portugueses contra moçambicanos.
Quarto: envolvimento da natureza na narrativa amorosa através de uma espécie de compaixão mútua. A permanente descrição feita pelo narrador da natirexa luxuriante moçambicana é conducente à exaltação dos sentimentos dos apaixonados numa lógica de mútuo
testemunho e interpenetração.
Narrativa dramática elevada a tragédia existencial, o Cisne de África explora de modo exemplar
as relações românticas, fastas e nefastas, entre os temas do amor, da morte e da separação entre
o desejo e o objecto do desejo, evidenciando, por múltiplos sinais anunciadores, o fecho trágico inelutável (Raimundo Ndhala, ferido em combate, morre suspirando por Maria Helena, que,
regressada a Lisboa, para sempre se isola, guardando as suas desgostosas recordações num diário).
Do mesmo modo, a exemplo das novelas de Camilo, o ritmo narrativo veloz de o Cisne de África,
diverso do do romance, encontra-se repleto de efeitos suspensivos, todos apontando para um
desenlace trágico. O Cisne de África celebra camilianamente, ao modo romântico, ahipostasiação da paixão, desenvolvendo uma retórica sentimental adversa à racionalidade das instituiçoes sociais, nomeadamente, separadora dos amantes. Finalmente, o Cisne de África estrutura-se em
pequenas unidades dramáticas soltas, relativamente independentes, ao modo do folhetim jornalístico e da novela camiliana (15 capítulos para 143 páginas), cujo movimento de passagem
de uma para outra vai compondo a unidade harmoniosa do texto.
Eis o retrato literário do primeiro romance (novela?) de Hanrique Levy, um autor camiliano na
forma e nos valores estéticos, aplicados ao ambiente social da Guerra Colonial, escritor que
escreve mais com a sensibilidade do que com a razão, numa espécie de vitalismo instintivo que
não se encontra longe, nas descrições relativas à natureza, de um paganismo panteísta de matriz
cristã.

Miguel Real "Henrique Levy- um romance camiliano" In "J.L." de 8-21/4/2009, p 24.
.
.