" À Inglaterra"
( Fragmento )
Ó cínica Inglaterra, ó bêbeda impudente,
Que tens levado, tu, ao negro e à escravidão?
Chitas e hipocrisia, evangelho e aguardente,
Repartindo por todo o escuro continente
A mortalha de Cristo em tangas d'algodão.
Vendes o amor ao metro e a caridade às jardas,
E trocas o teu Deus a borracha e marfim,
Reduzindo-lhe o lenho a c'ronhas d'espingardas,
Convertendo-lhe o corpo em pólvora e bombardas,
Transformando-lhe o sangue em aguarrás e em gim!
Teus apóstolos vão, prostituta devassa,
Com o fim de levar os negros para o Céu,
Desde o Zaire ao Zambeze e desde o Cabo ao Niassa,
Baptizando a Impiedade em Jordões de cachaça,
Mostrando-lhe o teu Deus na tua hóstia - o guinéu!
A honra para ti é inútil bugiganga.
O teu pudor é como um Matabel sem tanga,
Monstruoso ladrão, bárbaro traficante;
Compras a alma ao negro a genebra e missanga,
Vendendo-lhe a tua bíblia a queixais de elefante.
A tua bíblia! o teu Cristo!... A tua bíblia é uma agenda
Em que a virtude heróica a cifras se reduz.
E o teu Cristo londrino é um Deus de compra e venda,
Deus que ressuscitou para abrir uma tenda
De cortiça, carvão, álcool e panos crus!
Pela estrada da História, ó milhafre daninho,
Vai um povo seguindo o seu norte polar,
E tu és ladrão que lhe sais ao caminho,
Com manha do lobo e a coragem do vinho,
A roubar-lhe os anéis para o deixar passar!
Quando espreitas o fraco apontas a clavina,
Quando avistas o forte envergas a libré...
A tua mão ora pede esmola ora assassina...
Teu orgulho, covarde, é, meu Bayard d'esquina,
Como um tigre de rastro e um capacho de pé!
... ... ... ...
Quando já se desenha em arco d'aliança
A porta triunfal do século que vem,
por onde dez nações marchando atrás da França,
Palmas na mão, cantando um cântico d'esp'rança
Hão-de entrar numa nova, ideal Jerusalém;
... ... ... ...
Hão-de um dia as nações, como hienas dementes,
Teu império rasgar em feroz convulsão...
E no novo halali, dando saltos ardentes,
Com a baba da raiva esfervendo entre os dentes,
A bramir, levará cada qual seu quinhão!
E tu ficarás só na tua ilha normanda
Com teus barões feudais e teus mendigos nus:
Devorará teu peito um cancro aceso, a Irlanda:
E a tua carne hás-de vê-la, ó meretriz nefanda,
Lodo amassado em sangue, outro amassado em pus!
E assim como brutais monstros de pesadelo
No soturno porão duma nau sem ninguém,
Entre nuvens de fogo e temporais de gelo,
De bombordo a estibordo a rolar num novelo,
Desabando e rugindo, aos montões, num vaivém,
Se estrangulam febris, roucos, dilacerantes,
As pupilas a arder em brasas infernais,
Panteras contra leões, ursos contra elefantes,
Cobras, em redemoinho a silvar dardejantes,
Búfalos escornando os tigres e os chacais;
Assim vós, assim vós, dura raça assassina,
Sobre essa nau de pedra onde o mais vai bater,
Vos estrangulais numa carnificina,
De que só ficará, sob a densa neblina
Num pântano de sangue uma Gomorra a arder!
Milhões, milhões, milhões de bocas esfaimadas
Hão-de dilacerar-te o corpo com furor,
E a pedra a dinamite e a carne a punhaladas
Hão-de tombar no mesmo escombro ensanguentadas,
Em baques de hecatombe e blasfémias de dor!...
Hão-de os lordes rolar em postas no Tamisa!
Há-de o corpo de um rei dar um banquete a um cão!
Teu solo há-de tremer como uma pitonisa,
E a canalha sem lei, sem Deus e sem camisa
Abrirá teu bandulho infecto, oh Deus Milhão!
Bancos, docas, prisões, arsenais, monumentos,
Tudo rebentará em cacos pelo ar!...
E ao soturno fragor de teus finais lamentos
Responderão - ladrando! as cóleras dos ventos!
Responderão - cuspindo! os vagalhões do mar!
Junqueiro, Guerra. Horas de Luta. Porto: Lello & Irmão Editores, 1954, pp 75 - 78.
Nota - Este longo poema de Guerra Junqueiro está datado de Fevereiro de 1890 e tem por base o célebre Ultimatum da Inglaterra a Portugal durante o reinado de D. Carlos I. É um dos mais referidos poemas de Junqueiro.
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