12/12/13

 
 
 
     Tinha o seu passaporte de emigrante, foi a Lisboa revalidá-lo. Voltou à aldeia triste, em que agora, com a invasão da floresta, se ouviam todas as noites uivar os lobos, esperar que lhe chegasse vez no barco negreiro. Não tardou que recebesse o aviso. Despediu-se, rosto iluminado por um clarão, que irradiava como uma aurora.
     - Aperta-me bem ao teu coração, meu filho, que não o tornas a ouvir bater! - gemeu o velho.
     - Qual, em menos de seis meses estou de volta.
     - Não te vejo mais! - e carpia-se e quase o estorcegava nos braços. Como era mais alto, regava-o ao mesmo tempo com lágrimas.
     Embarcou na camioneta da carreira, com a malinha de fibra como viera, estranho, corajoso, possuído duma serenidade fora do seu lugar e do tempo.
     - Desgraçado de quem é português! - exclamou o Jaime.
     - Mil diabos te levem! - redarguiu o avô. - A vida fazemo-la nós. Quem diz vida, diz nação. À morte os vendilhões!
     Ficaram na casinha velha, em suspenso, à espera como no cimo dum cabeço, cercado pelas cheias, de olhos arregalados para o horizonte.


   Ribeiro, Aquilino. Quando os Lobos Uivam. Amadora: Livraria Bertrand, 1974, p 393.
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10/12/13

 
                            "  PARTÍCULA 80  -  Poente no horizonte  "
 
 
____________ quando, no princípio dos inícios, Oblívio perguntou a Celso por que é que ele via o mundo assim                  tal qual como o via, Celso respondeu-lhe                  " é porque nos livros que li houve sempre uma vontade de bondade".
 
 
     Esta frase, um pouco vagarosa na apreensão do seu sentido, era aquela que ele lhe queria dizer. Era também um pouco espessa, mas tinha descontraídos os poros. Haveria vontade de bondade nos livros/ orifícios maiores da escrita? E interligações entre os seus orifícios _____________ malhas de desejo dos seus textos? O que desejavam e intuíam, na contenção dos seus conteúdos?
 
 
      Oblívio deu as mãos a Celso,
e ficaram a olhar, não um para o outro, mas para o horizonte, onde o sol vespertino, alcançando o poente, apunha o seu lacre.
 
 
 
  Llansol, Maria Gabriela. Os Cantores de Leitura. Lisboa: Assírio & Alvim, 2007, p 202.
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08/12/13



      "  PARTÍCULA  36  -  Que não tem as antenas curtas  "


______________  estou a vê-los de perfil, estão a beijar-se  _____  Celso e Oblívio  _____  por detrás do biombo. Revelar-se-á o seu ser por serem amantes através da relação concebida em amor erótico?
Ou falta mais?
O que falta na esticada visibilidade do biombo?
Como actuam os beijos?
São artistas pintores, simplesmente pobres e intensos, actores, clínicos, ensinadores ou roturas profundas?
São cantores. Já os ouvi cantar incomparavelmente. Cada um canta sozinho, esquecido do mútuo vagamundo que lhes percorre os corpos. A semelhança connosco, que os transcende, revela-se pelo canto. Seu número inteiro, que é divisível por dois, fendido em ambo, está assim aberto, como nós, ao amor ímpar.
 
 
  Llansol, Maria Gabriela. Os Cantores de Leitura. Lisboa: Assírio & Alvim, 2007, p 84.
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04/12/13


                                  "  CLXIV. desejo  "
 
 
_____________  há um encadeamento no voo de um pássaro sem nome.
     É uma ave de alerta, corvo-escuro, vindo de falésias costeiras. E o que encadeia são reminiscências de memórias, lidas num livro, em Parasceve.
      A legente sou eu, a tentar extrair de mim a aprendizagem do entendimento,
com quem me acasalei para toda a vida.
      Esta frase, li-a, pela primeira vez, em francês - por essa razão, não traduzo:
 
 
                       " Pour conserver une chose, il ne faut pas une cause moindre
                       que pour la créer à l'origine."
 
 
      Nos reflexos metalizados, vejo uma cotovia.
      Tais passeriformes são óptimos cantores, e ouvi esta a imitar a porciúncula - uma pequena porção do meu desejo.
 
      Uma revoada, com orlas pálidas no dorso, sobressaltou-se.
      Jorraram fluidos, impelidos por partículas de silêncio que se moviam com desigual intensidade: ____________ acautelar o silêncio____________  cumpri-lo efectivamente para que não nos rompa; verificar que ele é um Fluido, e que as imagens são ainda um simulacro das imagens do silêncio e que ___ sobre ele ___  a própria cor é inútil.
 
 
      Este silêncio ___ aqui ___, é por ainda papel que dominei com linhas de tinta e, ao relê-lo, inexprime-se porque eu choco o seu olhar quando o fluido se suspende sobre o seu fundamento.
 
 
                  " Querem conhecer mais sobre o mundo em que estais,
                  e para onde eu irei."
 
 
      e a mulher, que se há-de chamar "Umadelas", senta-se ao lado de si própria, e fica atenta às partes de ausência de vagido.
 
 
          ________  e suspendi.
 
 
 
   Llansol, Maria Gabriela. Amigo e Amiga, curso de silêncio de 2004. Lisboa: Assírio & Alvim, 2006, pp 217 - 218.
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       "  CXLIV. humano Bach  "


_____________  levei uns sapatos com umas solas um pouco gastas. À entrada do mini-mercado, havia uma mancha de azeite já limpo, mas recentemente derramado. Mesmo apanhada no seu centro, comecei a oscilar sem conseguir firmeza nas solas muito limpas para transpô-la. Veio um rapaz que me deu as mãos, e eu saí da mancha. Senti-me ___  ao reflectir nesse momento ___, um flutuante. Com corpo de experiência. Dádiva de viver uma perda de equilíbrio que não se assemelha a mim
 
                                                         uma esfera oca e cintilante nas mãos,
                                                         com que enfrentava a cabeça.
 
 
  Llansol, Maria Gabriela. Amigo e Amiga, curso de silêncio de 2004. Lisboa: Assírio & Alvim, 2006, p 192.
 

01/12/13



        "  LXXVII. recuperação  "


      Nesse rio,
quedou perplexa: tinham chegado mais algumas palavras. O bico do pássaro não pára de bater.
 
      Ouviu então a voz      terrível,      sustentada pela nova melodia tocada pelas folhas:
      "mas a própria unidade do amor a que afectivamente aspiras não te ama porque se fragmenta." Pausa. "O que respondes ao que tu lhe pediste, e ele não deu?!"
      A pergunta foi tão certeira que a mulher sentiu-se cair, e ficou numa espécie de delírio. O urso escondeu o piano, lançando-se a comer toda a folhagem da cúpula. Decidira brincar com problemas sentimentais.
      - Mas é preciso escutar a parte séria da minha brincadeira - disse a Parasceve.
 
      Eu tinha anotado, na minha agenda, um encontro no sábado com um urso-de-colar que muito estimava, e que fora adiado para a próxima quinta-feira. Esqueci-me de recomendar-lhe que, entretanto, me mandasse uma mensagem para o exercício do som e das palavras. Postal que não vai certamente lembrar-se de mandar-me.
      - Eu sei que as regras do amor têm ritmo - imaginei que respondia Parasceve. - E não são cenas infantis - retorquiu-lhe, limpando com a língua uma lágrima que lhe deslizava pela face: - Seria um deserto se ninguém conhecesse esse ritmo.
 
      Sim, seria. Mas o amor é fraco, e logo vacila.
 
 
    Llansol, Maria Gabriela. Amigo e Amiga, curso de silêncio de 2004. Lisboa: Assírio & Alvim, 2006, p 105.
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