"Carcavelos", foto de Gérard Castello Lopes (1956)
Vê amor, como o belo entra na nossa vida e parte
Vê como se circunda também ele de corpos belos
e também partem.
As coisas que nos causam pena serão ditas doutra forma, amor.
Não se tratará de nenhuma espécie de retrocesso do nosso
corpo na linguagem,
mas talvez a suprema adivinha do que será o nosso corpo
futuramente,
quando ele se encostar e se aquecer definitivamente na
linguagem.
Deliramos hoje nos nossos sonhos com as coisas que serão
futuramente perfeitas -
as partes de nós que arderão no fogo ancião de todos os dias,
para se tornarem,
pela luxúria e pelo descuido das cinzas,
brancas, absolutas, meu amor.
Eduarda Tavares, In "Sono Derramado", Ed. Caminho,
1992, p 19.
27/07/08
Poetas
"Monologue pour Cassandre"
C'est moi, Cassandre.
Et voici ma cité recouverte de braises.
Et voici mon bâton, mes rubans de prophète.
Et voici ma tête pleine d'incertitudes.
C'est vrai, je triomphe.
Le feu de ma raison lèche la voûte céleste.
Seuls les prophètes que personne ne croit
jouissent de tels spectacles;
seuls ceux qui s'y sont assez mal pris
pour que tout s'accomplisse aussi rapidement
comme s'ils n'avaient pas existé.
Je me souviens maintenant, très distinctement
de ceux qui, devant moi, arrêtaient de parler.
Rires qui s'étouffaient.
Mains qui se dénouaient.
Enfants qui couraient vers leurs mères.
Je n'ai même pas connu leurs noms si périssables.
Et cette chanson sur la petite feuille verte
personne ne l'achevait quand j'étais là.
Je les aimais.
Mais les aimais de haut.
Bien plus haut que la vie.
De l'avenir. Où il fait toujours vide,
d'où rien n'est plus facile qu'apercevoir la mort.
Je regrette maintenant que ma voix fût si dure.
Regardez-vous vous-mêmes depuis les étoiles, disais-je.
Regardez-vous vous mêmes depuis les étoiles.
Ils m'entendaient, et baissaient les yeux.
Dans la vie ils vivaient.
Portés par le grand vent.
Déterminés,
dès leur naissance, dans ces corps migratoires.
Mais il y avait en eux comme un espoir humide,
une flamme nourrie de son propre grésillement.
Ils savaient mieux que moi ce que c'est qu'un instant,
un seul au moins, unique, n'importe lequel - Avant -
J'avais raison.
Seulement voilá, il n'en résulte rien.
Et voici ma chemise barbouillée par le feu.
Et voici ma quincaillerie de prophétesse.
Et voici mon visage tordu.
Visage qui n'a pas su qu'il pouvait être beau.
Wislawa Szymborska, do livro "Cent blagues"
(Sto pociech/1967), In "De la mort sans exagérer",
Poésie Fayard, 1996, p.37/8. (Tradução do polaco
para o francês por Piotr Kaminski)
" O Pescador"
Há vício no meu olhar fixo
basta lançar a linha e logo serena
em mim o desassossego
os olhos repousam no flutuador, mas é mais
que repousar, é como se finalmente
estivesse livre para não sair do sítio,
e assim o meu olhar fica inerte - não espero
que o peixe morda - fixo
o momento. Não preciso de nada não preciso
de olhar. Concentro-me nas rugas à superfície
não me esforço em penetrar até ao fundo.
Indiferente ao que possa aparecer, desaparecer
por cima ou por baixo de mim, indiferente
ao que foi e indiferente ao que está para vir.
As cores lisas a brilhar à tona da água
já são acontecimentos a mais
e vejam, eis o primeiro círculo
de algo que caiu na água ao longe.
Nada melhor do que não fazer nada,
do que não me mexer. Até um mínimo
erguer de olhos perturba irremediavelmente a ordem
e faz acontecer, faz acontecer.
Judith Herzberg, do livro "Botshol" (1981), In
"O que resta do dia", Ed. Cavalo de Ferro, p 125.
Há vício no meu olhar fixo
basta lançar a linha e logo serena
em mim o desassossego
os olhos repousam no flutuador, mas é mais
que repousar, é como se finalmente
estivesse livre para não sair do sítio,
e assim o meu olhar fica inerte - não espero
que o peixe morda - fixo
o momento. Não preciso de nada não preciso
de olhar. Concentro-me nas rugas à superfície
não me esforço em penetrar até ao fundo.
Indiferente ao que possa aparecer, desaparecer
por cima ou por baixo de mim, indiferente
ao que foi e indiferente ao que está para vir.
As cores lisas a brilhar à tona da água
já são acontecimentos a mais
e vejam, eis o primeiro círculo
de algo que caiu na água ao longe.
Nada melhor do que não fazer nada,
do que não me mexer. Até um mínimo
erguer de olhos perturba irremediavelmente a ordem
e faz acontecer, faz acontecer.
Judith Herzberg, do livro "Botshol" (1981), In
"O que resta do dia", Ed. Cavalo de Ferro, p 125.
26/07/08
" Frequência "
O teu número de telefone martela-me na cabeça
um ressoar ligeiramente agitado. Está em tudo
o que faço, impõe-se enquanto leio
enfia-se por baixo das palavras enquanto
escrevo.
E se o deixar um momento à solta
corre então para o telefone e liga
para que a tua casa vazia ressoe
um som que ninguém ouve. Talvez
uma chávena vibre com ele se o tom
atingir a sua amplitude.
Quando muito estala uma jarra.
Judith Herzberg, do livro "Botshol" (1981) In
"O que resta do dia", Ed. Cavalo de Ferro, p 119.
O teu número de telefone martela-me na cabeça
um ressoar ligeiramente agitado. Está em tudo
o que faço, impõe-se enquanto leio
enfia-se por baixo das palavras enquanto
escrevo.
E se o deixar um momento à solta
corre então para o telefone e liga
para que a tua casa vazia ressoe
um som que ninguém ouve. Talvez
uma chávena vibre com ele se o tom
atingir a sua amplitude.
Quando muito estala uma jarra.
Judith Herzberg, do livro "Botshol" (1981) In
"O que resta do dia", Ed. Cavalo de Ferro, p 119.
24/07/08
que a noite podia incendiar-se nos meus olhos" de autoria de Graça Pires (Livraria Buchholz,
Maio, 2007).
Maio, 2007).
"Foram os olhos. Foram os olhos dele, quando pousaram, devagar,
sobre os meus olhos, que me trouxeram esta sede até esse momento
apenas pressentida. Foram os olhos dele, tão acesos nos meus, que
encheram os meus olhos de estrelas e de sonhos e de lágrimas e de
pássaros errantes. E juro que pensei: não me importava de ficar cega
de tanto o olhar, porque a imprevisível cor de todas as madrugadas
ficará, para sempre, intacta, no meu peito. Desde então, os meus
olhos atraem a nitidez da noite e as aves nocturnas deslizam no meu
corpo, para lamber a lua escondida nos meus lábios. Cerro as pálpebras
à inquietação da manhã. Não procuro razões para a súbita armadilha
que foi o seu olhar. A sua respiração perto da minha era uma espécie
de afago. Tantas vezes me apeteceu dizer-lhe: aceita o vazio das mãos
que te estendi e guarda dentro delas teus desejos. Tantas vezes quis
falar-lhe do meu amor, como de barcos que chegam e partem de algum
lugar onde eu gostaria de ter nascido. Tantas vezes escrevi o nome
dele em todas as paredes imaginadas. E se ele me dissesse onde era
o lugar da sua sede, eu estaria lá para saciar com ele a minha sede"
Carta 1, In "não sabia que a noite podia incendiar-se nos meus olhos"
de Graça Pires.
10/07/08
Mas fui feliz.
Puseram a mão nesta mão.
Não me apagaram o choro da orfandade,
mas fui feliz.
Nada pedi
- o som da bica ouço,
o mesmo que irá comigo à morte
e esteve sempre no meu dia antigo,
e sabe o que eu queria -
mas fui feliz.
Fui pranto de outros olhos.
Fui feliz.
Senti o afago
entre o peito e a pele da camisa.
Fui feliz.
Alberto da Costa e Silva, Poema 3 do Ciclo "As linhas da mão",
In "Melhores Poemas", seleção André Seffrin, Ed. Global,
São Paulo, 2007.
08/07/08
Queria para mim
a vastidão inconfundível
do sonho, o inexorável excesso
do horizonte. Queria
para mim um oceano
rumoroso de andorinhas
nos luminosos beirais
das colinas. Queria
a impertinência de um desejo
sempre retomado
e incompleto. Mas nunca
a voracidade deste lodo
nos alicerces da cidade;
monstro irrefreável
que amordaça a liberdade.
Victor Oliveira Mateus, In "Liberdade", col. afectos nº3,
Ed. Labirinto, 2008.
05/07/08
Poetas
Oh as casas as casas as casas
as casas nascem vivem e morrem
Enquanto vivas distinguem-se umas das outras
distinguem-se designadamente pelo cheiro
variam até de sala pra sala
As casas que eu fazia em pequeno
onde estarei eu hoje em pequeno?
Onde estarei aliás eu dos versos daqui a pouco?
Terei eu casa onde reter tudo isto
ou serei sempre somente esta instabilidade?
As casas essas parecem estáveis
mas são tão frágeis as pobres casas
Oh as casas as casas as casas
mudas testemunhas da vida
elas morrem não só ao ser demolidas
elas morrem com a morte das pessoas
As casas de fora olham-nos pelas janelas
Não sabem nada de casas os construtores
os senhorios os procuradores
Os ricos vivem nos seus palácios
mas a casa dos pobres é todo o mundo
os pobres sim têm o conhecimento das casas
os pobres esses conhecem tudo
Eu amei as casas os recantos das casas
Visitei casas apalpei casas
Só as casas explicam que exista
uma palavra como intimidade
Sem casas não haveria ruas
as ruas onde passamos pelos outros
mas passamos principalmente por nós
Na casa nasci e hei-de morrer
na casa sofri convivi amei
na casa atavessei as estações
respirei - ó vida simples problema de respiração
Oh as casas as casas as casas
Ruy Belo, In "Todos os Poemas", Assírio & Alvim, pp. 212/3.
01/07/08
Quantas vezes me deixei ficar,
como hoje, de caneta em riste,
sentado a esta mesma mesa
esperando que tu ou o texto viessem...
.
Quantas vezes, em vão, lançava
o olhar sobre o porto, tentando
adivinhar-te no bojo
de um qualquer barco que divisava
.
ao longe, como quem investiga
de falhas a mais nítida presença.
E quantas, no meio do tilintar
das chávenas e do bulício do balcão,
.
as tuas palavras acabavam sempre
por me aquietar. No entanto, sei-me
de sina igual a hoje: o constante medo
de que um dia possas não vir
.
e que o futuro mais não seja
do que a inquirição dos dias,
onde os versos se firmam
como escolhos à deriva
em simples guardanapos de papel.
.
.
Mateus, Victor Oliveira. A Irresistível Voz de Ionatos. Fafe: Editora Labirinto, 2009, p
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