10/11/12

"(...) o nosso tempo é um desses períodos, como o foram os anos 30 do século passado..."



  O imprevisto já não é um conceito exótico, como era ainda há cem anos. Tornou-se o nosso elemento, o sinal distintivo das relações estratégicas da nossa época, com a rapidez dos nossos vectores, a potência de fogo das nossas armas, as novidades das nossas tecnologias, a instantaneidade da informação e as novas formas de terrorismo. A história recente, que é balizada por terríveis explosões, catástrofes naturais e grandes massacres, mostrou até que ponto as surpresas podem ser devastadoras. Esta mistura de violência e instantaneidade, de instabilidade e desordem, afecta tanto as nossas almas como os nossos espíritos. O desfasamento crescente entre o homem e a história comporta, por este motivo, um risco de tipo ontológico: põe em perigo a relação que liga a consciência humana ao tempo. A forte ligação ao passado, a transmissão dos valores, a continuidade das gerações, aquilo que liga os homens entre si, tudo isso está ameaçado pelo imediatismo em que vivemos e pelo caos que nos rodeia. Tanto a impaciência do presente como a desvitalização do passado transformam o tempo num vector de agitação e angústia, tanto mais que as metamorfoses introduzidas pelas revoluções tecnológicas têm um ritmo demasiado rápido para que o espírito humano possa seguir o seu curso. Logo, este é muitas vezes reduzido a um papel de espectador, que não espera nada mais da história - a não ser que perdure.
  Mas quando apenas pedimos à história que perdure, não devemos queixar-nos se ela, por vezes nos der respostas brutais. Teremos de procurar também o erro do lado do actor. (...) A surdez da história é também a do homem que só formidáveis explosões conseguem fazer estremecer. O que nos causa horror no ciclo de crueldade gratuita que os ecrãs de televisão apresentam, com a encenação de reféns degolados como animais ou a profanação dos mortos nos cemitérios, é o modo como o terror e a barbárie penetram em todos os lares por meio da imagem, mas é também, que esses rituais exprimem uma espécie de "norma" visualizada da extrema violência que reina no mundo, e perguntamo-nos aonde poderá conduzir. O que acontece sobretudo é que, presentemente, só os grandes crimes conseguem emocionar-nos. O regresso do crime-espectáculo desperta um mal-estar maior precisamente porque não se produz nas praças públicas, como no tempo de Voltaire, mas no conforto dos salões. O desfasamento é insuportável, do mesmo modo que a banalização da violência. Tucídides, que continua a ser a referência mais preciosa de todos quanto reflectem sobre a história, afirma que determinados períodos exprimem uma forma de exacerbação das paixões humanas. Se for o caso, o nosso tempo é um desses períodos, como o foram os anos 30 do século passado, em que a condenação do humanismo e do intelectualismo foi feita, em nome de tudo o que refreava as paixões humanas impondo-lhes normas.
 
 
   Delpech, Thérèse. O Regresso da Barbárie. Lisboa: Quidnovi, 2007, pp 13 - 15.
 
 
Nota - este blogue, nos seus postes, só utiliza fotos que já circulam na net, e foi durante a seleção desta foto que descobri que Thérèse Delpech havia partido em janeiro deste ano, por conseguinte este poste é também uma homenagem à lucidez, rigor e espírito crítico desta pensadora.
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