02/03/13
"Se somente chamasses,/(...) viria alguém,/ do mais alto das ilhas, do fundo rubro do mar, "
" Barcarola "
Se tocasses apenas o meu coração,
se pusesses apenas a tua boca no meu coração,
a tua fina boca, os teus dentes,
se pusesses a tua língua como flecha rubra,
ali, onde o meu coração poeirento lateja,
se soprasses no meu coração, à beira-mar, chorando,
soaria com um rumor sombrio, um rumor de rodas de comboio sonolento,
como águas vacilantes,
como o Outono nas folhas,
como sangue,
com um rumor de chamas húmidas a queimar o céu,
soando como sonhos, ou ramagens ou chuvas,
ou sereias de um porto triste,
se soprasses no meu coração, à beira-mar,
como um fantasma branco,
na orla da espuma,
na metade do vento,
como um fantasma à solta, à beira-mar, chorando.
Como uma longa ausência, como um súbito sino,
o mar reparte o rumor do coração,
chovendo, entardecendo numa praia deserta:
a noite cai sem dúvida,
e o seu lúgubre azul de estandarte em naufrágio
povoa-se de planetas de prata enrouquecida.
E o coração ressoa como um caracol amargo,
chama, oh mar, oh lamento, oh derretido susto
derramado em desgraças e ondas desatadas:
com o rumor, o mar acusa
suas sombras reclinadas, suas papoulas verdes.
Se existisses de súbito, numa praia tristíssima,
rodeada pelo dia morto,
frente a uma nova noite,
cheia de ondas,
e soprasses em meu coração de medo frio,
soprasses no sangue solitário do meu coração,
soprasses no seu movimento de pomba flamejante,
soariam suas negras sílabas de sangue,
cresceriam suas incessantes águas rubras,
e soaria, soaria a sombras,
soaria como a morte,
chamaria como um tubo cheio de vento ou pranto,
ou uma garrafa jorrando pavor aos borbotões.
Assim é, e os relâmpagos cobririam tuas tranças
e a chuva entraria por teus olhos abertos
a preparar o pranto que surdamente encerras,
e as asas negras do mar girariam em volta
de ti, com grandes garras, e grasnidos e voos.
Queres ser o fantasma que sopre, o solitário,
à beira-mar, o seu estéril, o seu triste instrumento?
Se somente chamasses,
seu prolongado som, seu maléfico silvo,
sua ordem de ondas feridas,
viria alguém talvez,
viria alguém,
do mais alto das ilhas, do fundo rubro do mar,
alguém viria, alguém viria.
Alguém viria: sopra furiosamente,
que soe como a sereia de um barco destroçado,
como um lamento,
como um relincho entre a espuma e o sangue,
como uma água feroz mordendo-se e soando.
Na estação marinha
seu caracol de sombra circula como um grito,
os pássaros do mar desprezam-no e fogem,
suas riscas de som, seus lúgubres barrotes
erguem-se à beira do oceano deserto.
Neruda, Pablo. Antologia. Lisboa: Relógio D'Água Editores, 1998, pp 93 - 97 (Selecção e Tradução de José Bento).
.