05/03/13

 
    Como melhor exemplo da sua arte poética, como obra mais significativa de toda a produção de Mallarmé, podemos assinalar A Tarde de Um Fauno ( L'Après-midi d'un faune, 1876), um complexo e ambicioso poema sugerido após a leitura de uma pequena composição de Banville ( Diana no Bosque ) que referia ao de leve a personagem. O tema do desejo de duas ninfas por parte do fauno quando este despertou da sesta, serve ao poeta como pano de fundo para uma ampla reflexão sobre a realidade e o sonho, sobre os limites da vigília e o universo contemplado através dela. A Tarde de Um Fauno constitui, deste modo, um excelente resumo prático dos ideais poéticos de Mallarmé, que gostava de se considerar pensador antes de poeta. O artista, pensava, está encarregue de decifrar o mundo, cuja aparência exterior constitui um símbolo da Ideia que esconde (e observem-se aqui as dívidas para com a filosofia hegeliana). A explicação do mundo, no entanto, exige ser realizada por meios distintos dos convencionais, uma vez que a realidade impõe uma falsa lógica com a qual não pode ser verdadeiramente decifrada a Ideia. A missão da arte, da poesia neste caso, é a de desvendar, por meio de uma lógica artística de natureza simbólica, o verdadeiro ser do mundo. Apesar do ilusório da realidade, não se deve renunciar nesse desvendamento à estrita materialidade pela qual o homem se põe em contacto com a Ideia. Essa é a razão pela qual Mallarmé presta tanta atenção à execução do poema, especialmente à sua estrutura melódica. Em A Tarde de Um Fauno, o autor aprende as lições de outros contemporâneos sobre a musicalidade do verso - recordemos, por exemplo, Verlaine - e atribui à lírica uma transcendência melódica ( não foi em vão que a obra depressa passou para o mundo da dança), que não podemos deixar de reconhecer como uma certa forma de misticismo musical, muito presente entre os artistas europeus da época, e cujo ponto mais alto foi atingido por Wagner nas suas óperas.
    Compreenderemos melhor, depois desta rápida exposição das suas ideias poéticas através de A Tarde de Um Fauno, as razões pelas quais Mallarmé foi um autor pouco prolífico. Por um lado, era muito arriscado apostar numa obra tão ambiciosa e complexa como a sua, sobretudo se a tentava tratar com seriedade e rigor; por outro lado, à dificuldade da composição acrescentava-se a da recepção pelo público, que Mallarmé nem sempre conseguiu fazer participar nesse desvendamento do mundo a que parecia convidar a sua poesia; juntamente com A Tarde de Um Fauno, O Túmulo de Edgar Poe e alguns poemas isolados constituem o melhor da sua produção. Por fim, a sua honestidade intelectual deve-se ao rigor, e não à escassez, da sua inspiração, à qual nunca lhe faltaram horas de dedicação e trabalho. As implicações pseudo-religiosas da sua crença artística, de filiação claramente romântica na sua veia idealista, levaram-no ao extremo de negar qualquer dívida para com a realidade, a qual tentou superar através do símbolo, verdadeiro ser do mundo. Mas essa tentativa de libertação da arte levava irremediavelmente a esse beco sem saída que a sua geração compreendeu e experimentou até à perfeição com o "silêncio poético" de Rimbaud. Este caminho morto, esta impossibilidade de chegar mais longe, devia-se à recusa do artista a ceder à materialidade para decifrar um mundo que se obstinava em não ser desvendado e daí a presença contínua na sua obra dos temas da esterilidade, do nada, do vazio... Há, por isso, na obra de Mallarmé grandes doses de negação da substancialidade comunicativa da arte, momentos nos quais a poesia sacrifica, inclusivamente, a matéria da poesia, a palavra, para tentar desta forma fazer participar o leitor do indizível. A verdadeira poesia, parece concluir Mallarmé, pode ser, quanto muito, sugerida (e só esta convicção lhe permiitiu continuar a compor), mas nunca poderá ser escrita, pois profana-se assim a sua mais íntima essência. Rimbaud já o tinha compreendido e por isso se manteve fiel a esse "silêncio" que nenhum outro autor chegou a praticar.
 
 
  Iáñez, E. História da Literatura, Vol. 7: O Século XIX, Realismo e Pós-Romantismo. Lisboa: Planeta Editora, 1992, pp 256 - 257.
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