14/03/13


   A irmã mais nova de Lázaro, no mesmo dia em que conheceu a luz que banhava a Terra inteira, conheceu também uma escuridão maior do que aquela em que sempre vivera mergulhada.
(...) Veio um homem do meio da noite perguntar-lhe o que tinha com uma voz clara e mansa, e a irmã mais nova de Lázaro respondeu-lhe que tinha fome, e frio, e ninguém que a abraçasse; que precisava de ir para Betânia, na Judeia, onde talvez lhe sobrassem um irmão e uma irmã, mas não sabia o caminho; e que procurava um homem que também não conhecia para lhe entregar o seu amor, que era grande e puro, pois a mais ninguém o entregara antes dele. E esse homem que viera do meio da noite, ajoelhando-se junto dela, prometeu que lhe daria abrigo, e ceia, e um abraço diferente de todos os que até ali havia experimentado (...). E, olhando depois o seu rosto suave e inocente, acrescentou que esse homem que ela procurava, esse homem a quem ela queria entregar o seu amor, não era senão ele. E a irmã mais nova de Lázaro (...) ouvindo a sua voz deliciosa, acreditou.
   Veio um homem do meio da noite todas as noites que a essa se seguiram, mas nenhum deles era o homem que a filha de Aura, deitada no chão da sua casa de Migdal, ouvira uma tarde pregar à sua porta e lhe enchera o peito de tumulto. Todos lhe dirigiam a palavra numa voz clara e mansa e todos lhe prometiam tudo o que ela dizia que faltava, pelo que, ao ouvi-los às escuras nas suas longas túnicas que lhes cobriam os pés, ela acreditava sempre cegamente no que diziam.(...) porque todos esses homens que dividiam com ela a cama e a ceia e lhe davam um abraço que ela preferia nunca ter experimentado queriam poder voltar a dar-lho noutra noite (...)
   Entre os seios da irmã mais nova de Lázaro, depois de uma noite que, entre todas, foi a mais dura e longa de toda a sua vida - pois foi nela que voltaram todos os homens que antes a haviam tido uma só noite -, o coração apertou-se, pela primeira vez na sua vida, num novelo de dúvidas e maus pressentimentos quando, na enxerga em que adormecera de exaustão, a acordaram aos gritos as vozes ácidas de um grupo de mulheres que traziam as mãos e os regaços cheios de pedras. Foi só quando a primeira palavra a atingiu no peito, e quando a primeira pedra a atingiu no peito com o som dessa palavra, que a filha mais nova de Aura conseguiu encontrar a resposta à pergunta que a mãe lhe pedira que nunca formulasse. E, levantando-se com as poucas forças que lhe restavam para se salvar do seu destino (---) correu para fora da cabana com as lágrimas (...) por ter descoberto que o corpo que tinha para oferecer a esse homem que amava já não era o corpo que ele, na sua infinita bondade, merecia.
(...) E, por entre as vozes iradas de todos aqueles que só pensavam em castigar a irmã mais nova de Lázaro pelo pecado da carne, (...) Jesus perguntou o nome à mulher que, ajoelhada aos seus pés, os enxugava agora com os longos e sedosos cabelos das lágrimas que sobre eles derramara. E ela, sem o olhar ainda por vergonha, respondeu-lhe que se chamava Maria e era de Migdal, mas para Betânia, na Judeia, era o seu caminho, pois aí talvez lhe sobrassem um irmão que se chamava Lázaro e uma irmã que se chamava Marta, os únicos que poderiam ainda recebê-la sem pedras na mão. E Jesus, erguendo o olhar para uma nuvem que pairava sobre a sua cabeça (...), disse-lhe na sua voz clara e mansa:
- Vês alguma pedra nas minhas mãos? Pois então vem comigo, ia justamente para Betânia salvar um homem do seu destino, e uma viagem faz-se sempre melhor em boa companhia.
 
  Pedreira, Maria do Rosário. Aos Seus Pés in "Putas: novo conto português e brasileiro". Vila Nova de Famalicão: Quasi Edições, 2002, pp  89 - 93.
.