30/12/09

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É verdade que Luchino Visconti não foi o primeiro nem o único a romper com a tradição psicológica herdada da literatura romanesca do século XIX, e que a influência de Jean Renoir foi por certo essencial; mas foi um dos poucos a atingir um tal domínio na elaboração da densidade humana que caracteriza os seus heróis. Já em 1942 essa concepção inspira Ossessione, que, mais do que uma adaptação do romance de James Cain, é uma verdadeira recriação onde apenas a intriga foi conservada. Porque não é a intriga, "as coisas por si", o que interessa a Visconti, mas sim "os homens vivos". No caso, aquela mulher, Giovanna (Clara Calamai), que se parece estranhamente com a Livia Serpieri de Sentimento (Allida Valli), com o Gianni, de Vaghe stelle dell'orsa (Jean Sorel), com Ludwig... mas também com Peppa, a heroína de Verga, A Amante de Gramigna que Visconti se propunha adaptar e que a censura fascista recusou. Essa mulher, Giovanna ou Peppa, esses heróis cuja existência é totalmente determinada pela situação vão afincar-se em conquistar a sua existência "entre as coisas" e sobretudo contra elas. A liberdade humana contra a ordem social. Esse o tema de Ossessione, esse o fio conductor que unifica toda a obra de Luchino Visconti. Essa, também, a originalidade da sua atitude, ao recusar separar o romanesco, "os homens", do seu ambiente circundante, "as coisas". Foi pelo enraizamento no contexto social, económico e histórico, pelo modo como este ilumina a personalidade dos heróis, que Visconti pôde romper com o psicologismo tradicional. Os seus heróis não são desprovidos de psicologia, muito pelo contrário, mas a psicologia já não é a única dimensão a "explicar" a personagem e deixou de ser intemporal e abstracta.
É pelo enraizamento no contexto que Visconti ultrapassa a aventura individual, a anedota singular, e atinge uma espécie de universal. O adultério de Ossessione é secundário. O mais importante é a revolta de uma mulher contra uma clausura de que nesse momento ganha consciência. É o encontro, difícil, doloroso mas exemplar, de dois seres libertos que se inventam e se descobrem um pelo outro, Giovanna e Gino são já Gianni e Sandra, o professor Konrad de Violência e Paixão...
A invenção da palavra "neo-realismo" a propósito de Ossessione talvez tenha abafado a verdadeira novidade do filme, que provavelmente reside mais neste pôr em situação das liberdades humanas do que na sua estética neo-realista. Nesta qualidade, poder-se-ia caracterizar a obra de Luchino Visconti como "um cinema de situação", evocando "liberdades que se escolhem em situações" (J.P. Sartre).
" O homem colhido por um momento da história"
O contexto histórico participa da mesma vontade de enraizamento que acabamos de lembrar, e Visconti deu provas da mesma preocupação de exactidão, alimentando com inúmeras anedotas e dilatando, com as reconstituições, os custos de produção, para grande prejuízo dos financiadores. Mas nele, a história não é simples pano de fundo estético ou pretexto dramático: permite situar o herói no momento da escolha, uma escolha que, num contexto adequado, será sempre individual e colectiva, pessoal e política. Colocando os seus heróis em períodos de crise em que uma ordem morre ao dar à luz, na dor, a ordem que lhe sucede, Visconti procura provocar uma certa catarse nas personagens e captar o momento em que as relações atingem o seu ponto máximo de exacerbação. As personagens dos seus filmes acabam por se encontrar frente a frente com elas próprias. A protecção que poderia vir do amor ou da família acaba por lhes faltar, os privilégios do poder ou do dinheiro não chegam para as proteger. Estão sós.
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Alain Sanzio e Paul-Louis Thirard In "Luchino Visconti", Publicações Dom Quixote,
Lisboa, 1988, pp 44 - 45.
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