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Aqui me costumava eu sentar num tempo
de sereno abandono. Tempo em que as palavras
(quais insectos fulgurantes) germinavam sentidos
que eu nem adivinhava. Vinham e eram toda
uma paisagem com a brisa a envolver-me a tarde,
a humidade da grama, o ocre das paredes sempre
à luta com as trepadeiras. A dilatação do tempo
trazia-me, nessa altura, as roucas sirenes dos barcos,
o contraste pitoresco dos canteiros e até ( num
estranho perder de vista) os desenvoltos sorrisos
da infância. Aqui me viria eu sentar depois,
no tempo das grosseiras rotinas, dos rodopiantes
embustes com que agilmente te enfeitavas;
máscara a tingir de sombra as vidraças do jardim,
moldando de peçonha os rostos na aceleração
ininterrupta dos relógios e no frenético rodar
dos carros no asfalto. Acinzentado tempo esse
no vazio turbilhão de ti! Agora... agora regresso
ao tempo do assumido abandono. Do circular vivido
que um atento não descura nunca. Tempo ainda
com veleiros lá dentro, de novo a serpentearem o rio.
Veleiros que, sem remorso nem culpa, te lançam hoje
à praia como restos de um naufrágio; como coisa sem
préstimo, que desinteressadamente terei de arrumar
um dia no mais sombrio recanto da memória.
Victor Oliveira Mateus in "Revista Inútil" Nº2 Abril 2010, p 62.
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