30/12/11

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Uma das coisas em que reparei durante aquelas semanas na UCLA foi que muita gente conhecida, quer de Nova Iorque, quer da Califórnia e de outros sítios, partilhava de um hábito mental geralmente atribuído aos que se deram muito bem na vida. Acreditavam piamente na sua própria capacidade de resolução de problemas. Acreditavam piamente no poder dos números de telefone que sabiam na ponta da língua, o médico certo, o principal doador, a pessoa que podia facilitar um favor junto do Estado ou da Justiça. A capacidade de resolução dos problemas daquela gente era de facto prodigiosa. O poder dos seus números de telefone era de facto ímpar. Eu própria, durante a maior parte da minha vida, partilhava da mesma fé enraizada na minha capacidade de controlar os acontecimentos. Se a minha mãe fosse hospitalizada inesperadamente em Tunes, eu conseguiria que o cônsul americano lhe levasse jornais em língua inglesa e a metesse num voo da Air France para ela se encontrar com o meu irmão, que estava em Paris. Se Quintana ficasse subitamente apeada no aeroporto de Nice, eu conseguiria arranjar alguém da British Airways para a meter num voo da BA para ela ir ter com o primo a Londres. No entanto, a um determinado nível, porque sou medrosa de nascença, tivera sempre a percepção de que certos acontecimentos da vida estão para além da minha capacidade de os controlar ou resolver. Certos acontecimentos limitam-se a suceder. Este era um desses acontecimentos. Sentamo-nos para jantar e a vida, tal como a conhecemos, acaba.

   Joan Didion in " O Ano do Pensamento Mágico ", Gótica, Lisboa, 2006, pp 104 - 105.
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29/12/11

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As divisões Lobisomem foram uma das ideias mais desesperadas de Himmler, forjada perante a derrota iminente. Rumores da sua existência tinham-se espalhado pela Alemanha e fora dela. Os serviços secretos aliados estavam convencidos de que pelotões especiais de insurgentes, fanáticos incapazes de aceitar a derrota, estavam de facto a ser criados para continuarem a luta depois da capitulação da Alemanha.
(...) Esta foi a marca da guerra de Bruno: oferecer-se como voluntário para ser um Lobisomem e lutar até ao fim, se não para além do fim. Parecia tudo muito adequado. O homem que tinha aderido ao movimento na primeira oportunidade, ainda adolescente, há mais de 20 anos, alistara-se no última tentativa desesperada do Terceiro Reich para sair do túmulo do colapso militar total. A sua carreira nazi ia acabar, como começara, com um compromisso ideológico inabalável, absolutamente nada perturbado com o facto de que, em termos militares, ele estava completamente fora do seu elemento. A ideia de que bandos minúsculos de guerrilheiros alemães poderiam ter algum impacto numa força aliada que ascendia a milhões, com rádios que nem sequer ele, o homem que devia ministrar o treino, sabia bem como funcionavam, era ridícula. Mas é uma imagem profundamente reveladora do tipo de homem que Bruno sempre tinha sido. Se havia algum sinal de uma luta na sua mente entre as prioridades concorrentes de manter a família em segurança e prolongar a existência do regime nazi, mesmo que apenas durante algumas semanas, foi óbvio o que pareceu levar a melhor. Mas até Bruno e os seus colegas do SD/ Gestapo devem ter sentido a onda de ódio e vingança que se aproximava.
Enquanto Bruno e os seus colegas do SD/ Gestapo maquinaram os seus planos de contrainsurgência, o resto da cidade de Praga também estava ocupada a construir valas antitanques e a pensar na melhor forma de lutar contra o que até eles sabiam que seria batalha final da guerra (...)
Em meados de Abril, Frank distribuiu planos de avacuação a todo o seu pessoal alemão essencial, parecendo dessa forma colocar a ideia do Lobisomem em espera. Foi uma mudança de estratégia que parece também ter tido um impacto em Bruno. Guardado nos arquivos de Praga, encontrámos um documento bizarro datado de 24 de abril de 1945. Era um formulário de pedido de carta de condução. Muito bem preenchido, ali estava ele, a irradiar normalidade em todos os aspectos exceto na data - pouco mais de 15 dias antes da capitulação formal do exército alemão. Quanto mais olhava para ele, mais absurdo me parecia, a prova de um mundo voltado de pernas para o ar. Como podia alguém dar-se ao trabalho de seguir os trâmites burocráticos necessários para validar uma carta de condução neste ponto final e fatal da guerra, com todo o exército vermelho a alguns quilómetros de distância? E, no entanto, tudo está presente e correto, a rubrica, os carimbos de borracha, as categorias dactilografadas de veículos que Bruno podia conduzir, até o nome da escola de condução que o tinha aprovado. (...) Penso que, nos dias seguintes, um alemão na estrada teria necessitado de carta de condução para evitar ser acusado de deserção. Nunca saberei. No entanto, quando olhei para a assinatura no verso não pude deixar de perguntar a mim mesmo em que estaria ele a pensar num momento como aquele.
(...) No dia 30 de Abril, Adolf Hitler refletiu sobre o seu encontro iminente com exército vermelho e escolheu uma rota de fuga alternativa: cerca das 15 horas, na segurança do seu abrigo subterrâneo por baixo da Chancelaria do Reich, suicidou-se com um tiro. Incrivelmente, nesta fase tardia ainda havia bastante "normalidade" em Praga, para que o acontecimento fosse assinalado nas primeiras páginas dos jornais em língua checa com faixas pretas de luto. Mas a compostura alemã estava a desmoronar rapidamente.
No dia seguinte, 1 de maio de 1945, a Primeira Frente Ucraniana do marechal Koniev que estava nos arredores de Berlim recebeu ordens para se dirigir para oeste de Dresden, seguindo o rio Vltava até Praga. No dia 2 de maio, a Segunda Frente Ucraniana do marechal Malinovski, que acabara de ocupar Brno, recebeu ordens para avançar para Praga a partir do sudeste. A ofensiva soviética começaria a 7 de maio e ocuparia a capital checa dentro de seis dias (...)
Protegidos pelos soviéticos, cujos tanques estavam agora nos arredores da cidade, os checos puderam por fim revoltar-se contra os seus opressores nazis.

  Martin Davidson in " O Perfeito Nazi ", Texto Editores, Alfragide, 2011, pp 284 - 288.
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27/12/11

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Hitler pode ter respeitado profundamente as capacidades de organização de Rohm, mas desconfiava dos seus motivos. Agora, diziam a Hitler que as SA estavam não apenas a fomentar uma "segunda revolução", mas também a conspirar ativamente com potências estrangeiras (nomeadamente a França) para o derrubar. No final da primavera de 1934, a sua paranoia estava a transformar-se em verdadeiro pânico. Nem sequer Bruno, que estava tão bem relacionado como qualquer apparatchik do partido, fazia ideia das forças que estavam a ser alinhadas contra Rohm e a liderança das SA. A verdade é que todas as SA foram apanhadas desprevenidas, o preço a pagar por não terem um sistema de informações eficaz e por se deixarem vencer em estratégia de uma forma tão inequívoca pelos seus muitos rivais.
Ignorando o problema em que estava metido, Rohm ordenou despreocupadamente que todas as SA tivessem uma licença alargada no verão, que teria início no dia 1 de julho. Himmler, Goring e os outros que conspiravam ativamente para a queda de Rohm tinham agora um calendário urgente para agir. (...) Provas forjadas de "listas de morte" das SA foram apresentadas a Hitler. Com apenas um ou dois dias antes de as SA iniciarem as férias de verão, Hitler atacou subitamente.
Rohm tinha iniciado as suas férias na cidade termal de Bad Wiesse, na Bavária, para tratar de uma série de achaques. Tinha um problema cardíaco e sofria os efeitos nefastos de ferimentos do tempo da Primeira Guerra Mundial. Ele e o seu séquito (incluindo o seu harém de consortes do sexo masculino) estavam agora hospedados num hotel, completamente alheios à armadilha que estava prestes a apanhá-los. Hitler e um pequeno grupo de oficiais superiores das SS chegaram de carro ao incício da manhã de domingo, 30 de junho. Arrombaram as portas do quarto e prenderam um grupo espantado e embasbacado de homens das SA, entre os quais Rohm. Repreendidos, empurrados e vigorasamente acusados de traição, foram levados para a Prisão de Stadelheim, em Munique. (...) Detenções semelhantes foram efectuadas em Berlim e Breslau.
O fim foi rápido e implacável. Cerca de 85 pessoas foram mortas durante a chamada Noite das Facas Longas, quer onde se encontravam quando foram detidas - em suas casas, sentadas às secretárias - quer diante de pelotões de fuzilamento organizados em Munique, Berlim, Breslau e Dachau. As SS usaram o caos para marcar pontos com os importantes críticos do movimento, incluindo o homem que tinha escrito recentemente um discurso hostil proferido pelo vice-chanceler Von Papen.
Por fim, chegou a vez de Rohm. O homem que tinha sido o mentor de Hitler e o seu aliado mais próximo recebeu um revólver carregado com o qual poderia suicidar-se, mas recusou-se a ser conivente com a charada da sua culpa, preferindo desnudar o peito e olhar para os dois oficiais das SS, que entraram prontamente na sua cela e o alvejaram à queima-roupa. "Todas as revoluções comem os seus próprios filhos", terá dito. Foi ordenado que a matança terminaria antes de 2 de julho e as certidões de óbito de todos os que caíram depois dessa data foram devidamente alteradas.
As SA estavam acabadas enquanto força por direito próprio, e durante o resto da sua história nunca escaparam à trela do partido. Continuaram a existir, mas de uma forma extremamente reduzida. A maioria das suas armas foi confiscada e entregue ao exército.(...) Depois da guerra, esta perda de poder de decisão salvou-a de ser declarada uma organização criminosa pelas autoridades aliadas. Bruno não foi o único soldado de assalto que teve de aceitar o facto de a liderança das SA ter apostado mal e perdido.
(...) No dia 2 de Agosto, o idoso presidente Hindenburg faleceu finalmente. Hitler apropriou-se sem demora do cargo dele, que por fim lhe conferiu poder em todo o país, não apenas no Reichstag. Duas semanas mais tarde, obteve uma ratificação retrospetiva para o seu passo num plebiscito que decorreu no dia 19 de agosto. Oitenta e nove por cento das pessoas que puderam votar apoiaram a medida; quatro milhões e meio de alemães, mesmo nesta fase tardia, tiveram a coragem de dizer que não, mas não adiantou nada. Foi uma vitória esmagadora.

  Martin Davidon in " O Perfeito Nazi ", Texto Editores, Alfragide, 2011, pp 168 - 170.
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26/12/11

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Todavia, a verdadeira medida da aptidão de Bruno para pertencer às SS prendia-se com o que podia oferecer-lhes. Ele teve pouca dificuldade em convencê-los de que era um candidato mais forte do que a média. As suas opiniões políticas são louvadas vezes sem conta por serem uberzeugt - convincentes, um nazi convicto. No entanto, a palavra que surge inesperadamente não é ideologia, nem sequer política. É a muito maior Weltanschauung, ou visão do mundo, algo mais lato e profundo que um simples manifesto político específico. Isto vai muito para além de uma mera preocupação, ou até de um conjunto de opiniões; o nacional-socialismo era uma ideologia que procurava abarcar todos os aspectos da vida alemã, desde as suas opiniões sobre a Humanidade até à justificação do seu futuro império. Os seus avaliadores nazis não estavam apenas a investigá-lo à procura de provas de fiabilidade política; estavam a testá-lo para saber até que ponto ele contribuiria para o principal objetivo do SD, que era pegar nessa visão do mundo e usá-la como um modelo a partir do qual se construiria uma nova Alemanha.
(...) A geração seguinte, a da minha mãe e das suas irmãs, desempenhou o seu papel neste processo de dissimulação e negação. Sabiam que não deviam fazer perguntas impertinentes e foi-lhes incutido que nunca conseguiriam compreender o que tinha estado em causa. De uma maneira geral, aceitaram isso. Acima de tudo, por vergonha. Não apenas pelo que ele pode ou não ter feito. Foi mais profundo do que isso. Foi uma reação contra o facto mais óbvio sobre o passado de Bruno, repulsa pelo facto de ele e milhares como ele terem aparentemente adorado ser nazis e terem parecido apreciar cada parte da ideologia, incluindo o antissemitismo que a alimentou. Uma vez, perguntei à minha mãe:
- Sentiu que estava a viver numa família importante?
- Oh, sim - respondeu ela. - O papá era um homem importante.
O nacional-socialismo foi uma política destinada a gratificar aspirações e frustrações íntimas, e tinha formado, aperfeiçoado e justificado claramente todas as opiniões mais importantes de Bruno. A sua integração no nazismo tinha sido um processo longo e complicado, começando como uma reação à catástrofe da Primeira Guerra Mundial e continuando a evoluir até 1945. Lutar por ele tinha sido o maior privilégio da sua carreira. Foi isso que a família tanto quis evitar que fosse lembrado. Tinham razão. Tinham passado anos a desmantelar, e a ignorar, a vida ativa de Bruno enquanto nazi. Agora eu ia nazificá-lo de novo, e não seria uma experiência fácil.
A única coisa que eu tinha para continuar era uma maço de papéis, datas e formulários que juntos, constituíam a espinha dorsal de uma carreira nazi. (...) Ele tinha sido um soldado de assalto, um lutador de rua, um ideólogo, um político intelectual, um guerreiro biológico, um acólito, um soldado, um delator, um fantasma, um burocrata, um árbitro de política social - em suma, o perfeito nazi.
(...) Comecei a perceber que descobrir mais acerca do meu avô significaria descobrir mais acerca do Terceiro Reich.

  Martin Davidson in " O Perfeito Nazi ", Texto Editores, Alfragide, 2011, pp 61 - 64.
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25/12/11

A prenda de Natal.

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Há feriados que deixam a cidade deserta. Nem vivalma nas ruas. Claro que, em termos ecológicos, até talvez seja uma vantagem, o problema é se queremos tomar uma bica - nem um café aberto, com o enorme serão que foi feito, noite adentro, na prática dos sentimentozinhos mais positivos. Mesmo assim costumo sempre ousar: meto-me no carro e acabo encontrando qualquer coisa, nem que seja uma gasolineira... Desta vez também consegui: um pequeno café numa das zonas luxuosas da cidade. Bebi a costumeira bica e, lembrando-me de algo, perguntei ao rapaz:
- Por acaso não têm uma embalagem onde possa levar duas bicas?
- Levar duas bicas?!
- Sim, é que tenho gente lá em casa e assim escusávamos de cá voltar. Às vezes há aqueles copos de plástico...
- Não, não temos!- Depois de olhar todas as prateleiras, rematou: - Só se levar nas duas chávenas!
- Nas duas chávenas?! - Exclamei eu com o ar de um imbecil que é apanhado de surpresa. Mas espere, espere... E já ele enchia as chávenas:
- Pode levar estas duas. Estavam para aqui... nós já nem as usamos.
Eh, ca ganda baile qu'este me está a dar - despertei eu - e atirei-lhe a farpa:
- Ah, já percebi, se hão de ir pró lixo, assim levo-as eu. - O rapaz fez-se desentendido. Pela surpresa dos dois empregados, e conversa entre todos, percebi que ele era o filho do dono. Depois das bicas tiradas, enroscou uma chávena na outra, colocou um guardanapo por cima e sorriu com ar de sacana:
- Como vê é fácil! Leva assim as duas bicas.
- Mas espere lá... e se eu comprar uma garrafa pequena de água e deitarmos lá o café.
- Não, não vale a pena! Olhe, entenda isto como a minha prenda de Natal! - E voltou a sorrir.
Eh, ca granda cabrão - pensei eu, imaginando-me já a fazer equilibrismo, rua afora, com as duas chávenas na mão: - eu não estou a levar um baile, isto é mas é um sarau com orquestra sinfónica e tudo, mas não perdes pela demora... e pus o meu ar de querubim recém purificado:
- Ah, se é a sua prenda de Natal, já é outra coisa... então, sendo assim, levo as chávenas.
E lá vim, rua afora mesmo, até ao carro, qual acrobata de circo... Depois atravessei a cidade, " a vinte à hora", com as duas chávenas "sentadas" no tablier.
Enfim... amanhã, ou depois, será o segundo acto, pois as chávenas já ali estão embrulhadinhas, só me resta encontrar uma loja aberta onde possa comprar um laçarote ostensivamente garrido, já que uma prenda de Natal - dada ou retribuida - tem de ter sempre um significado preciso.
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23/12/11

Acabou de sair...

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Acabou de ser colocada em linha a "REVISTA TRIPLOV - DE ARTES, RELIGIÕES E CIÊNCIAS"
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Nova Série, 2011, Número 19 - 20.
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Ver artigo " Imagens da sexualidade na obra de Ferzan Ozpetek
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aqui:  www.triplov.com/novaserie.revista/numero_19
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11/12/11

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Nunca tomes decisões, ó Cirno, fiado num homem mau,
quando quiseres executar uma acção de valor.
Aconselha-te, sim, com um bom, depois de muito te esforçares
e por teu pé teres percorrido, ó Cirno, um longo caminho.
Não confies a todos os amigos os teus actos por inteiro:
pois raros são aqueles que têm ânimo fiel.
Intenta grandes obras, fiado em poucos homens;
se não, terás aborrecimentos intoleráveis.
O homem fiel e digno na dura incerteza, estima-o,
ó Cirno, como o ouro e a prata.
Poucos amigos encontrarás que sejam fiéis
nas dificuldades, ó Polipaides,
amigos que ousem, de ânimo concorde,
partilhar igualmente ventura e desgraça.
Desses não encontrarias, nem que procurasses
por todo o mundo, tantos que uma nau sozinha não os levasse;
desses, dotados de vergonha na língua e nos olhos,
que a riqueza não induz ao mal.
Não me estimes só em palavras, se outro é o pensar da tua mente,
se és meu amigo e tens um ânimo fiel.
Estima-me de coração puro, ou despede-me
e odeia-me abertamente, suscitando uma contenda.
Quem tem um coração separado da língua, é companhia
temível; melhor é que seja inimigo do que amigo.

  Teógnis ( I, 69-92) in " Helade, Antologia da Cultura Grega "  Faculdade de Letras da
Universidade de Coimbra, Coimbra, 1971, pp, 137 - 138 ( Organização e Tradução de
Maria Helena da Rocha Pereira ).
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10/12/11

" dedico más espacio al corazón ajeno/ que a la suerte. "

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  " Chance "

Llevo toda la vida mirando las estrellas
y ahora que puedo disponer de tiempo
dedico más espacio al corazón ajeno
que a la suerte.

Y nunca amo por fe, puede entender-se:
la pasión es una verdad tan grande
como una estrella.

Toda una vida para conocerme
y ya ves:
estoy aquí,
cansado del destino
y de la muerte.

  Javier Sánchez Menéndez in " Faltan palabras en el diccionario, Poemas Escogidos 1983 - 2011 ",
Libros del Aire, Madrid, 2011, p 111.
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" por roubar-te um semblante,/ uma paixão ou um pouco do teu tempo. "

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Daría cualquier cosa del mundo
por estar contigo algunos ratos,
por llenarme de mar o de alegria,
por robarte un semblante,
una pasión, un poco de tu tiempo.
Nos morimos llamándonos
y nos llamamos tarde,
siempre dispuestos nunca consumiendo
ese poco de ansia que nos dejó el destino.
Y esta sonrisa que recorre mis labios
no es más que una lágrima
tan grande como un beso;
y esta nostalgia al aire,
y este vivir que encela,
y este calor ambiguo, adolescente,
y esta distancia.

Daría ahora lo que poseo, que es nada,
triste aproximación.

  Javier Sánchez Menéndez in " Faltan palabras en el diccionario, Poemas Escogidos 1983 - 2011 ",
Libros del Aire, Madrid, 2011, p 33.
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08/12/11

" aquele que conversando pôde apenas/ aprender uma forma de ver... "

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  " Alexandria "

  I

onde se perderam aqueles cadernos a que
teimosamente tornavas para escrever
de novo e de novo as mesmas frases
descalços pés apoiados na arcada da varanda
o sol dando-te no rosto cadernos onde
teimosamente ensaiaste alguns
gestos um verão inteiro atrasando-te
onde estão esses cadernos que não
chegaste a rasgar e a costurar de novo
onde com ténues fios brancos e estreitas
agulhas apenas alinhavaste frases
esses comprados em estações
de autocarro furtivamente guardados
em gavetas de armários com chave

 II

rapariga pintando caixilhos de janelas mãos de
tinta manchadas rápida ela emerge à flor
da voz com o vagar do gato mas numa
prudência tão ensaiada que em nada poderia
persuadir outra palavra dita mergulharia
entre as imagens cujas cores rápido se esquece

 III

aquele que conversando pôde apenas
aprender uma forma de ver esse nunca
falou contigo inteligente e cínico calculou
a projecção do próprio eco a conversa
entrou em areia pela noite alastrou
às lanternas ténues fios brancos e estreitas
femininas mãos por engano a luz feriu-te
um pouco acertando-te no rosto tu reclamado
em cor de sépia se a memória fosse um resgate
uma coisa sem fala e sem pena uma memória
calorosamente guardada e esquecida
coisas que podemos suportar perder
porque nos foram totalmente concedidas

 IV

as pequenas nostalgias como fios se prendem
em encaixes de mãos e ombros aquele
que falou contigo junto às vinhas podadas
nesse dia deixou-te para uma conversa mutilada na mesa
de outono o cheiro de uvas nas mãos
como terias tu provado desse vinho
com que timidez reclamar o que sempre
foi nosso um regresso por hábito à exígua e pobre
divisão da casa às paredes nuas solenidade
de mesa em sala vazia tecla de piano onde
se esconde uma nota em que nunca se acerta

  V

tu na mesa de outono te sentaste o rigor
do corpo direito as mãos nos joelhos
pousadas fazes lembrar aqueles soldados
que muito tempo longe regressam
quando já ninguém os esperava
com altivez olham o que é deles
e já só podem sentir desdém
assim percorres de novo e de novo
a estreiteza das mesmas ruas

  VI

continuarás a voltar a estes quartos junto
aos portos de alexandria como fez kavafis
nos seus poemas o encontro e diálogo com
as coisas será por fim uma pequena variação
de cor na luz do dia será esta forma de
silêncio o ajeitar da última flor no vaso
em que a aprisionaste

  Tatiana Faia in " Lugano ", Artefacto, Lisboa, 2011, pp 47 - 49.
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07/12/11

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  " Seu a seu dono "

 
A pele espera nas coisas a carícia do uso
como o cão anseia pelo dono.
O bordo do copo, os dentes do garfo.
Usurpar os lábios entrabertos
com a alma útil e desinteressada.
Um gole de. Faz-se tarde.
O vinho faz esquecer a pele do copo.
Porque tocar ( pensa ela )
é uma confidência nocturna.
Lá fora as flores. As sebes.
O ressumar de amantes no cálice.
Toco-te com mãos alheias:
eis toda a confidência de que sou capaz.
Um vestido de seda a abrir na minha perna:
um osso para te fazer correr:
um ganido de amor à porta do prédio.

  Rosa Alice Branco in " Gado do Senhor ", &etc., Lisboa, 2011, p 38.
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06/12/11

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  " Prova de existência da alma "


Deixaste a ressurreição a meio.
Não me lembro de nada tão incompleto como ela.
O meu director fala de objectivos, fazemos mapas
e somos despedidos se. Ou temos prémios
e corrupção. Haja alguma arte em tudo isto.
Senhor, o teu corpo está seco na gaveta.
Estás no meio de nós coberto de bolor.
Nas palavras de São Paulo a criação teve parto e dores
em relação. Um prelúdio, sabemos hoje, prelúdio
sem mais nada. Os animais não aspiram à eternidade.
Nisto devia consistir a alma que lhes foi negada.
Por menos despediria eu um empregado.
O meu cão brinca a que eu sou o cão dele.
Atira-me um osso e corro atrás, todos corremos atrás.
Mas é assim que se sobe na vida porque aspiramos.
Prova provada de que temos alma.

  Rosa Alice Branco in " Gado do Senhor ", &etc, Lisboa, 2011, p 33.
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05/12/11

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  " Antínoo & Adriano "

 
Esta é a zona batida pelos afogados
Esta é a velocidade máxima de quem submerge
aqui as romãs romanas não crescerão mais
& duas águias de névoa orvalhando sandálias
adolescentes na grama de primavera escrevem
a palavra remember
o doce Antínoo com seu arco carregando
corações maduros na aljava na fenda-essência
da história
os semáforos do tempo acendem seu sinal
verde por cima de sua
longa cabeleira
este doce garoto
partiu o coração do imperador
o Império adorando um deus adolescente afogado no Nilo
sem esperar a Manhã egípcia chegar
Adriano chorou o resto de sua
vida na villa ao sul de Roma
as paredes rachavam pelas tardes
deixando entrar as lembranças
houve um tempo nas montanhas da
Bitínia quando as caçadas se prolongavam
até a hora do amor
o vinho Falerno aderindo aos estômagos
vazios enquanto os olhares se
cruzavam sobre o javali assado rodeado
de frutas
este amor construiu seu império na
memória & as escamas de
meu cérebro caem ao contato de
seus dedos
os poetas latinos ouviram provaram
entenderam este tesouro afundado
nas tripas do tempo
resta o vento de verão nos caminhos
onde eles andaram

  Roberto Piva  in " obras reunidas, volume 2 - Mala na mão & asas pretas ", Editora Globo,
São Paulo, 2006, pp 84 - 85.
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  " A Coréia é na esquina  "


Assim não dá meu tesão
eu começo a sonhar com você todas as tardes
& você lá em Santos
comendo amendoim
vendo anjos nas cebolas do mercado
navios entram & saem do porto polidos
eu corto as veias & rego meu queijo-minas
você me ama eu sei & me envaideço
amoras jorram a beleza anarquista de suas
coxas molhadas
o peixe-espada pode lhe declarar amor
eu penso nestas ilhas perfumadas
mas o caminho de volta eu só conto
a este urubu em carne viva
que grasna na sacada.

  Roberto Piva in " obras reunidas, volume 2 - Mala na mão & asas pretas ", Editora Globo,
São Paulo, 2006, p 133.
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04/12/11

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Pólen costumava organizar sua vida às quintas-feiras mas
estávamos numa quarta & sua loucura era da pesada sem
distinção de raça credo ou cor & uivava pelas ruas com
duas panteras pintadas em seu peito falando com os amigos
sobre as poesias de Maquiavel, César Bórgia, Castruccio
Castracani o herói das galáxias medievais no início da era
burguesa dos chinelos & pincenê agora devidamente
catalogada na Ruína Absoluta sem permeios kennedianos
na mexerica & suas pompas fúnebres.
O trombadinha quis saber se Pólen acreditava no lúmpen.
O trombadinha tinha sido descabaçado por um esquimó
bolsista da PUC. Polén declamou doze poemas escritos
contra a CIA. O trombadinha queria dar.
Pólen o comeu ali mesmo, depois de roubar sua camisa.
O trombadinha queria mais.
Pólen então chamou seu amigo economista sádico &
classicista & fez ele comer o trombadinha que suspirava
dizia palavrões inflamados pedia para ser cintado & chamado de
Arlete & toda a imaginação delirante de Eros irrompeu no
cérebro do economista que queria ver a vertigem de perto
antes de se converter para sempre ao ateísmo militante
soltando suas farpas contra a figura de Nonô o Curandeiro
padroeiro do trombadinha.

  Roberto Piva in " obras reunidas, volume 2 - Mala na mão & asas pretas ", Editora Globo,
São Paulo, 2006, p 59.
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02/12/11

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 " Provisão Poética para Dias Difíceis "

 
Simplicidade é artifício recolhido, dobrado, alisado a
ferro. Leveza aérea daquilo que foi corrigido e passa-
do a limpo. Estratégia embrulhada para fins libidino-
sos. É também a fome que ensaliva perto do prato,
movimento de um corpo que acompanha o ritmo.
Simplicidade é aquilo que se quer. É a górgona do
sentido. Desejo de dados já jogados, de versos esten-
didos com as faces para cima. Eu queria a maçã de
Bandeira, mas não seu quarto de hotel. Eu queria a
sesta de Montale, e depois pisar nos espinhos do seu
horto. Eu queria o mar de Kavafis, mas não para nau-
fragar num canto de terra. Eu queria as lentes de
cummings, sem os limites da tipografia. Queria as asas
de Eliot, mas não sua velhice. Eu queria, é simples,
mas bem aqui, longe de Starnbergersee.

 Marcos Siscar in " O roubo do silêncio ", 7Letras, Rio de Janeiro, 2006, p 66.
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01/12/11

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           " Pietá "


Eu sou a sua pietà, meu amor, agora, nesta ponta de
rua onde os ventos quebram. Eu entendo bem seu
espanto mudo de que a vida comece no sacrifício, o
abraço na morte, o amor na despedida. Eu o seguro
sobre os joelhos na luz azul desta noite, compreendo
a sua angústia. A força só além do hábito. Para a víti-
ma, é sempre o inimigo que escolhe as armas. Enten-
do o que quer dizer, e só tenho minhas mãos para um
longo afago. Quantas vezes não saiu do cinema co-
brindo o rosto, quantas vezes a cólera não foi maior
que a ofensa. E nada disso o poupou. Eu o entendo.
Como pode seu espanto só ter sentido aqui, sobre
esses joelhos dobrados, premidos pelo peso de seu lon-
go corpo, todo ele, transido de destino. Só posso di-
zer que entendo e você deve acreditar. Em quem mais
acreditaria? É por mim que aqui se deitou e eu assim
o recebi. Por aqui também passam rostos ressentidos.
Mas veja como o mal evaporou-se ao primeiro vapor
do dia. E as chagas expostas ao céu claro ganharam
cores de simplicidade, tapumes previsíveis, tornaram-
se gestos de defesa. Embora seja tarde, acredite em
mim. Eu continuarei a seu lado. Só não prometo a
escultura.

 Marcos Siscar in " o roubo do silêncio ", 7Letras, Rio de Janeiro, 2006, p 41.
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Acerca dos Prémios...

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O que já vi, relativamente à questão dos Prémios Literários, acabou por me conduzir - na área da poesia - a duas posições bastante primárias: primeira, todos os Prémios (não as obras que os vencem!) que estimulem quem escreve poesia merecem ser dignificados, venham eles de Câmaras, de Empresas ou de Organismos Oficiais; segunda, o que conta verdadeiramente, nesse mecanismo, não é o rótulo mas a integridade e a verticalidade do júri. No que me diz respeito, confesso que não me foi fácil ler dezenas de originais e pensar sobre eles, mas foi agradável trabalhar com outros elementos de um júri que decidiu atribuir, por unanimidade, o 1º lugar de um Prémio Literário ao livro: "Desarrumação do Frio" de Luís Aguiar.
E relativamente (ainda) à integridade: não sei - nem quero saber - quem eram os outros concorrentes e só ontem, quando recebi o livro já impresso, dado que nem ao Google tinha ido, é que fiquei a conhecer o currículo literário do Luís Aguiar, que, afinal, já tinha vencido o Prémio Irene Lisboa, o Prémio Afonso Lopes Vieira, o Prémio Castello di Duino (Trieste), etc.
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