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" Pietá "
Eu sou a sua pietà, meu amor, agora, nesta ponta de
rua onde os ventos quebram. Eu entendo bem seu
espanto mudo de que a vida comece no sacrifício, o
abraço na morte, o amor na despedida. Eu o seguro
sobre os joelhos na luz azul desta noite, compreendo
a sua angústia. A força só além do hábito. Para a víti-
ma, é sempre o inimigo que escolhe as armas. Enten-
do o que quer dizer, e só tenho minhas mãos para um
longo afago. Quantas vezes não saiu do cinema co-
brindo o rosto, quantas vezes a cólera não foi maior
que a ofensa. E nada disso o poupou. Eu o entendo.
Como pode seu espanto só ter sentido aqui, sobre
esses joelhos dobrados, premidos pelo peso de seu lon-
go corpo, todo ele, transido de destino. Só posso di-
zer que entendo e você deve acreditar. Em quem mais
acreditaria? É por mim que aqui se deitou e eu assim
o recebi. Por aqui também passam rostos ressentidos.
Mas veja como o mal evaporou-se ao primeiro vapor
do dia. E as chagas expostas ao céu claro ganharam
cores de simplicidade, tapumes previsíveis, tornaram-
se gestos de defesa. Embora seja tarde, acredite em
mim. Eu continuarei a seu lado. Só não prometo a
escultura.
Marcos Siscar in " o roubo do silêncio ", 7Letras, Rio de Janeiro, 2006, p 41.
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