14/05/12

Apresentação...

( Texto de apresentação do livro "Obra ao Rubro" de António Gil. Lido no dia 12 de maio no Auditório do Campo Grande, 56.)

Obra ao Rubro, de António Gil, numa primeira aproximação, alerta-nos para a especificidade do seu próprio título. Plurisignificativo, ele contém em si uma dedicatória a um dado processo ígneo e incandescente, mas também uma oferenda e um tributo a um caminho no desvelamento de algo. Parece-me, pois, podermos estabelecer uma contraposição entre o livro de que nos ocupamos aqui e a célebre Obra ao Negro de Marguerite Yourcenar. Assim, se esta última mostra (e denuncia) um estar-aqui marcado pelo obscurantismo e pela negritude, em Obra ao Rubro é outro o itinerário que se pretende traçar.
António Gil, num texto preambular ao nó central da obra, traça um paralelísmo entre um processo organizativo alquímico-fisicista:

" Matérias primordiais, a inconjunta mole dos tecidos minerais (...) num cadinho de sais reagente..." (p 7)

com um outro que mais não é do que a própria experiência poética:

"(...) o poema e sua gema em conjunto, escolhem indigentes seu caminho, seu tempo, seus referentes, seu assunto..." (p 7)

Na terceira secção deste primeiro texto o poeta mapeia o que irá ser o solo fundamental (e fundante) deste seu livro ao falar do que se ergue das "trevas da matéria", isto é, dos "ribeiros de luz, regatos de fascínio, cascata de deslumbre", que são voz que circum-navega o eu-poético. António Gil, nesta minha leitura, pretende encaminhar-nos para um périplo simultaneamente poético-existencial, cosmológico e metapoético. Périplo este que ele cinde em cinco estádios - de que mais à frente falaremos -: Magmas, Irrupções, Aras, Fluxos, Auras.
Dos vários procedimentos estilísticos utilizados pelo poeta, podemos já referir um que surge como liame encaminhador de estádio para estádio: após discorrer, poeticamente, sobre cada uma destas etapas, António Gil vai lançando expressões e imagens que permitem a transposição para a temática seguinte sem que tal se faça com hiatos ou passagens abruptas. Estamos, por conseguinte, ante um livro de poesia que, sem pôr em causa a autonomia de cada poema, finca como cunho último a organicidade do todo. E chamo-lhe livro de poesia porque a sua não homogeneidade formal ( veja-se logo os primeiros textos: uma quadra, dois textos aparentemente prosaicos, um poema formado por dois tercetos...) jamais põe em causa a poeticidade da obra, bem como o solo matricial do qual ela irrompe e que a torna una e estruturada. Relativamente a esses textos que não assumem a forma (tradicional) de poema, direi tão-só que pode existir poesia sem que haja verso (vejam-se obras de Rimbaud, Christian Bobin, André Velter, Bernard Noel...), mas também podem existir outras, que, apesar de serem em verso, não o são de poesia, atenda-se, por exemplo, a Uma Viagem à Índia de Gonçalo M. Tavares. Portanto, e superado este aparente obstáculo, penso que Obra ao Rubro é um livro todo ele enformado por textos poéticos, mesmo consderando os que se inscrevem numa linearidade e narratividade com configuração de prosa, estes, por sua vez, apresentam-se como fragmentos de discurso trespassados por ritmo e compasso, que, regra geral, são enfatizados por dados esquemas rimáticos e por recorrentes figuras de estilo, que lhes vincam uma musicalidade bem próxima da existente nas estrofes tradicionais

Exemplo 1 ( texto de Magmas, p 16, a partir da 6ª linha ):
"(...) no céu frio petrifica, alta vaga marítima que avança, de fogo a ponta de sua lança (...) então falo e sinto que para dentro grito..."

Vemos aqui elementos cujo uso tem por fim a assunção do poético pelo fragmento, elementos como:
. o predomínio de uma pontuação prosódica
. rimas internas (fugindo, contudo, à definição estatuida deste conceito!) de carácter soante ou consonante: lança/ balança; rebate/ bate; relance/ lance; calo/ falo...

Exemplo 2 (texto de Irrupções, p 39, da 1ª à 9ª linha):
" É verdade que desenraizado andei de cidade em cidade (...) o desfalecido traço não avivo nem refaço."

Também neste excerto podem ser detetados diversos procedimentos que inserem toda esta produção textual na área da poesia. Eis, por exemplo, as mesmas rimas internas soantes, ou consoantes ( aliás, António Gil raramente utiliza rimas toantes): verdade/ cidade; balsa/ valsa; falso/ valso, etc.
Para além destes dois exemplos à guisa de breve fundamentação do carácter rítmico-poético deste livro de António Gil e, especificamente, deste tipo de textos, encontramos ainda outros procedimentos estilísticos que sedimentam (e ajudam a caracterizar) esta escrita:

Exemplo 3 ( texto de Irrupções, p 30):
" O solo em fuga decolando das minhas solas decoladas, o cabelo despenteando o vento (...) por força da sugestão e da palavra, acima, bem acima, muito acima...

Apenas alguns recursos estilísticos para reforçar a tese da riqueza desta tecedura poética:
. prosopopéias: "o solo em fuga"... esta figura aparece também noutros textos: "a fome das águas" (p 22)
. comparações: " os braços adejando como flâmulas"
. repetições intensificadores (gradações): " acima, bem acima, muito acima..."
. metáforas: "esta ave de rapina que já então no pulso me saía "

Finalmente o Exemplo 4 (texto da secção Irrupções, p 27):

Neste caso temos um poema constituído por quatro estrofes (quadras) que se apresenta:
. com rima externa interpolada ( António Gil nunca usa a rima emparelhada nem a alternada) e, de novo, a predominância das rimas soantes
. um deliberado desrespeito pela métrica do verso
. certos procedimentos estilísticos que raramente aparecem nos outros poemas, tais como:
----- jogos de paronímia: pareceria/ parceria (3ª estrofe); tacto/ tato (4ª estrofe)
----- o encavalgamento (processo que levanta, hoje, alguma polémica entre os poetas): veja-se o que surge na passagem da 1ª para a 2ª estrofe.

Como corolário deste breve olhar para o último livro de António Gil, e apenas no que diz respeito aos seus aspectos formais, não me ficaram quaisquer dúvidas que o poeta domina este seu fazer, mas sem dele se sentir prisioneiro, antes pelo contrário, a urdidura dos textos aparece-nos subordinada ao sentido dos mesmos. Por conseguinte, António Gil dota a sua escrita não só de fluidez, mas de um intencional acicate como forma de envolver o leitor com o corpo do texto; como forma de o comprometer com um percurso que, apesar de polissémico, parece-me subrepticiamente apontar para uma finalidade que o eu-poético pretende, com alguns laivos de normatividade, endossar àquele que o está lendo e, em certa medida, completando.
Este percurso inicia-se com uma primeira secção denominada Magmas. Para a leitura que temos vindo a fazer é importante esta opção pelo plural da palavra! Esta matéria ( ou matérias?) ardente surge-me associada a uma negatividade que se encontra esparsa por todas as vertentes dessa massa heteróclita e fervente:
. " Logo que as trevas jorravam dentro do quarto" (p 12)
. " Chorei no asfalto espargido" (p 14)
. " O ruído da metrópole desprende-se da ponta desta hora..." (p 15)
. " Assim como os níveis do ruído se podem elevar até à dor " (p 16)
. " Tanto nos habituámos a viver à superfície das coisas" (p 19)

E será depois, no texto da página 20, que, enfaticamente, nos surgirá a associação já referida entre o mundo físico e o mundo do poema:

" Embora haja quem o considere extinto ou de flor rara o repute, o poema é animal vivo e portanto repercute a respiração, a circulação e do voo o instinto: o seu magma particular é a vontade de voar nos dedos acesos como asas... "

A confirmação deste paralelismo mundo físico/ universo do poema poderá também ser inferida do final da página 22 , à medida que se anuncia o final desta secção e se adivinha a "divina irrupção" (p 23).
Em Irrupções ( e António Gil opta de novo pelo plural!) o magma incandescente, revolto e inundante do Todo encontra a sua porta de saída:

" O poema então irrompia
na língua viva do tacto
escrito na pele com o tato
do contacto que o escrevia "   (p 27)

Estas irrupções, tal como o entrevisto, e apesar do continuum do trajecto que atravessa todos os territórios do aqui abordado, são plurais, e mantém-se nelas uma interconexão em todos os sentidos. Dito de outro modo: se as irrupções ocorrem nos planos cosmológico e antropológico (veja-se texto da página 30), logo, elas se repercutem também no plano da criação poética:

" Se acaso para escrever aqui me sento
logo em voo uma ave se levanta
e é ainda em voo que ela canta
a imensidão do mútuo amor ao vento "  ( p 31 )

Esta irrupção, que é também existencial (leia-se a primeira estrofe do poema da página 35 ou o texto da 39), é acima de tudo o que nos leva dos Magmas ao "aprender o alfabeto da luz, a pronúncia sussurrada da folhagem, estudar apaixonadamente as conjugações estelares " ( p 34 ). Estamos, portanto, no seio de um caminho que é também decifração, onde " raras são as criaturas que aprendem a ler " ( p 41 ) aquilo que realmente É, aquilo que, pela sua sacralidade, não se encontra a todas as horas nem a todas as pessoas se entrega. Chegados a este ponto, e num reforço da coerência desta obra, percebe-se por que o poeta opta por epígrafes de autores como Jakob Boheme e Eckhart.
A terceira secção do livro, Aras, aparece intimamente ligada a uma dimensão sacrificial e a uma dada encenação do rito. Aqui, sobre as aras, é uma etapa fundamental do percurso que se desvela, uma etapa onde " o tempo é círculo " (p 47), como em qualquer ritual de consagração, e, portanto, onde cosmos, homem e poema ressurgem "ao arrepio da morte" (p 47), numa dimensão do sagrado que nada tem a ver com a noção tradicional de Deus, já "que de um deus abstracto e ausente, só necessita quem, pelo tacto, já seu Deus não sente" (p 48). É neste caminho que, por vocação e sentir o eu-poético a si destina... será por aí, por essa estrada, que o seu frio se transformará em brasa e a sua sede em água ( cf. p 51). Após esta apreensão (ou intuição?) António Gil escreve que é nas pelejas da terra, nessa incontornável guerra terrena, que ele ensaia algo:

"(...) onde treino e realizo a promessa antiga de um reino que me preza e que me abriga... " ( p 51 )

São vários, nesta secção, os elementos de uma simbologia iniciática, veja-se, por exemplo, "a rosa": páginas 56, 57, 63, 88, mas são ainda mais as passagens que nos remetem para a ritualização transmutativa de todas essas matérias provenientes dos Magmas originários (homem, poema, cosmos, etc.), que agora, sobre as Aras, vislumbram um território outro, um espaço onde serão plenamente, onde serão na absoluta coincidência do seu em-si essencial com o sagrado de que emanam e participam. A súmula deste itinerário aparece de forma nítida no poema da página 56:

" Ao sonho chegarás seguindo o curso
da rosa pendular da hipnose, do transe
da suspensa pedra que balance
entre dois pontos fixos do percurso

assim tu, auto-sugestionado
subirás ao miradouro do que és
e a paisagem que tiveres a teus pés
é imagem de teu ser distanciado "

Esta minha leitura tem logo outra confirmação na epígrafe de Fluxos, já que aí se diz explicitamente que a luz divina que ilumina todas as coisas e, consequentemente, a transmutação divinizante que recai sobre os entes, não é assimilada da mesma maneira por todos, já que o "coração grosseiro e inferior" devora-a, enquanto que o "coração subtil e superior absorve-a e irradia-a", ou seja, dotado de Aura este último funde-se com o próprio sagrado. É este, penso, o roteiro poético-metafísico apontado pelo o eu-lírico, roteiro que é igualmente ético, antropológico e até mesmo cosmológico. Um roteiro que, proveniente desses Magmas iniciais e através de etapas e transformações - Irrupções, Aras, Fluxos - alcança, em Auras, esse clímax que é simultaneamente plenitude, concretização fundamental e obtenção da verdadeira OBRA: sagrada, divina, RUBRA. Diz o poeta:

"Rubra é a obra que semeia
na carne fria da pedra
o verbo divino que impregna
de sangue quente a ideia "  ( p 87 )

Neste labor poético-existencial a poesia assume-se como um Fluxo privilegiado, mas, nas minha leitura, existem outros igualmente importantes (o Amor, a Palavra... até a Contemplação, como se lê na página 83), no entanto, é na (e pela) poesia que toda a obra humana se vê como transformável, pelo que uma OBRA AO RUBRO será necessariamente POÉTICA e uma OBRA POÉTICA será invariavelmente uma OBRA AO RUBRO. E será, por consequência, nesse território dual ( e dialogal) que o poeta tenderá a manter-se sempre, como António Gil conclui num dos seus poemas:

" Seja o poema abrigo
percurso, rosa acesa
rio, raio de surpresa
aura de rosto amigo

não me ocupa entrar
no poema ou dele sair:
se nele estou deixo-me ir
se dele saio é para voltar "   ( p 88 )
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                     Victor  Oliveira  Mateus