Barata, Manuel. Quadras Populares: umas sim, outras quase. Lisboa: Fólio Exemplar, 2012, p 50.
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(Nota: a quadra de raiz popular, e alicerçada na oralidade, é vulgarmente menorizada por certos autores e estudiosos com tudo o que isso implica de ocultação de aspectos ligados ao social, ao histórico-político e até ao linguístico. A tudo isso acrescenta-se a importância de escritores do género que, pelo seu valor - como é o caso de António Aleixo - , têm funcionado igualmente como elemento intimidatório ao cultivo deste tipo de poesia. No caso do poeta aqui presente - licenciado em Estudos Portugueses, variante Português/ Francês -, apesar de nunca perder de vista raízes estéticas alicerçadas no popular, podemos encontrar dele também outros textos para além da quadra, veja-se - por exemplo - um livro ainda não postado aqui: "Fragmentária Mente", de 2009.
As duas quadras deste poste inspiram-se no célebre soneto de Camões "Sete anos de pastor Jacob servia", as duas do poste seguinte referem-se, como é óbvio, a Miguel Torga.)
Eu serviria sete anos
Pra de ti ouvir um sim.
E outros sete serviria
Pra te ter ao pé de mim.
Tenho tanto pra te dar,
Se quiseres receber.
Umas asas pra voar
Umas pernas pra correr.
Barata, Manuel. Quadras Populares: umas sim, outras quase. Lisboa: Fólio Exemplar, 2012, p 16.
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29/04/13
" O Anjo "
Pousa o Anjo em meu ombro
E permanece com os pés
Cheios de sons que não escuto
Só adivinho o Anjo no meu
Ombro tem um jeito discreto
De falácia e uma cor
Que não se exprime por
Pincéis mas é real
A cor de suas vestes que não
Vejo a cor além da
Cor uma verdade acima da
Verdade como só o
Anjo pode ser
Aquela que não encontro e seus
Braços longos têm uma
Curvatura infatigável
A inocência de um quadro
De Chagall que não vi e
Seu rosto seu rosto
Lembra um pássaro que não existe
Um pássaro voando
Belo como a beleza
Intocável da liberdade
Goulart, Helvécio. Poemas Reunidos. Goiânia: Editora da UCG, 2007, p 112.
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28/04/13
" Pássaros "
Ela ficara simplesmente olhando
O vestido verde preso de um lado só do corpo
Uma jovem olhando o mundo que começava a afundar
O coração dos homens batia devagar
O relógio batia devagar dentro do coração dos homens
Ela ficara simplesmente parada
A hera subia pelas paredes do Verão
Tiritavam de medo os loucos os devotos os bandidos
Dormiam criaturas inocentes dentro de casas remotas
Feitas dos dias que tinham chegado e partido
No olho das vidraças embaçadas
No rosto sem nenhuma esperança
Na colheita do fogo noturno
Na grande distância cinzenta dos sorrisos
No latido dos cachorros conduzindo os tiranos
Nos gritos nas torturas por afogamento
No massacre dos campanários
Nos pés descalços e frios das cidades
Ela ficara parada com o braço para o alto
Uma estátua com uvas coroando-lhe a cabeça
Com pássaros cantando dentro de seus olhos
No pântano das lágrimas
Na longínqua floresta da alegria
Goulart, Helvécio. Poemas Reunidos. Goiânia: Editora da UCG, 2007, p 98.
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Quando eu era menino, acedíamos à
quinta de duas formas: por uma porta que um tio-avô mandara fazer nas traseiras
de sua casa ou por um portão que a caseira, morando no outro extremo das
habitações, tinha no seu quintal. Geralmente, eu e os meus primos escolhíamos a
primeira alternativa. Certo dia, contudo, a minha avó, por uma questão de
colheitas e de dinheiros, incompatibilizou-se com o irmão: mandou fechar o
extenso corredor que ligava as duas casas, deitou abaixo uma das paredes
traseiras e, uma vez com acesso directo à quinta, ordenou que se fechasse o
poço a cadeado. Os meus pais ainda a tentaram persuadir com o célebre argumento
de que água não se nega a ninguém, ao que ela respondia, célere e inflexível: Nem a honra, nem a dignidade! Minha avó
nunca mais falou ao irmão, considerando sempre que aquilo que os distinguia
jamais poderia ser colmatado por quaisquer tipos de elos ou afinidades. Eu e os
meus primos passámos a ter dificuldades acrescidas nos nossos jogos e
brincadeiras, já que o meu tio-avó, por vezes, vingava-se em mim e nos netos: Eles hoje não saem; Eles hoje têm de
estudar, etc. No entanto, quando nos encontrávamos todos era uma festa: os
mais velhos subiam às árvores à cata de ninhos, as raparigas preferiam as
cavalariças e o picadeiro, um ou outro corria atrás dos gansos (imagem que mais
tarde me daria um certo jeito para um poema da Antologia da Hariemuj!) de
vergasta em punho, quanto a mim – e excluindo o descarregar dos porcos, com os
seus guinchos aflitivos, de que nunca gostei – ia para um lado qualquer dos que
eles escolhessem. Mas – e para confessar – aquilo que mais me seduzia era ficar
a observar o enorme galinheiro: era um enorme edifico que os meus bisavós
tinham mandado fazer entre três pilares que haviam pertencido a um moinho de
vento… eu ficava fascinado a observar a ordem que naquilo tudo havia: as
diversas capoeiras estavam unidas entre si por estreitas passagens, todavia, as
galinhas jamais trocavam de divisória e quando Adelaide (a única mulher que até
hoje vi de pera e bigode e a única empregada de que eu fugia sempre sete a
pés!) vinha com as sêmeas, o milho ou as hortaliças, a aproximação ao comedouro
era uma autêntica cerimónia de poder e de submissão: elos de vassalagem, medos,
rituais de sedução levados a cabo por alguma ave infortunada visando conseguir
algo -- Deuses, como a minha observação infantil do galinheiro me viria a ser
útil vida afora, quantas e quantas vezes a reencontrei sob disfarces múltiplos
e camuflagens torpes! Mas – e deixem-me confessar – daquilo que eu gostava
mesmo, nessa altura e durante essas observações, era das minúsculas galinhas da
India: indiferentes às regras das grandes, saltavam de divisória em divisória,
comiam e dormiam onde lhes apetecia e ao pé de quem lhes apetecia, era como se
fossem aves de outro mundo, de um mundo paralelo que escapava à normalização
vigente do galinheiro uniformizado em função de regras e submissões… As
galinhas da India, naquela sociedade perfeitamente hierarquizada, poedeiras de
ovos desprezíveis, com a sua figura e cantar frágeis, não serviam naquela
quinta para absolutamente nada… para nada é como quem diz: a mim serviram-me
para apurar o ver, para me ensinar a afastar de aparências e fraudes, para
evitar os caminhos demasiado tortuosos e investir, apenas, naquilo que a mim se
possa dar -- em autenticidade e com rasgos de absoluto. V.O.M. (Lx, 24/4/2013,
22h09)
O PRÉMIO LITERÁRIO GLÓRIA DE SANT' ANNA na imprensa de Moçambique.
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26/04/13
" Partilha "
Entrego-te a casa e as árvores
que vivem com a casa
o riacho que passa embaixo
dos gravatás e anêmonas
Entrego-te a rua que flutua
em teu olhar como a asa
de um canário amarelo que ainda canta
no pessegueiro em flor
Entrego-te a esquina que te encanta
do outro lado da casa o odor
dos pinheiros retilíneos e sensuais
os ígneos raios da manhã
resplandecente os silêncios abissais
a envolver a palavra doce e vã
que me disseste e eu disse
Entrego-te o começo e ingloriamente o fim
a seriedade a alegria a tolice
e assim tudo o que foi e o que restou de mim
Goulart, Helvécio. Poemas Reunidos. Goiânia: Editora da UCG, 2007, p 28.
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24/04/13
( Segundo poema do Ciclo Sonya's Fairytale )
... right in front of the approaching train
a woman and a man fuck in the snow.
Consider, my soul, this texture of stubbornness and quiet:
as she falls and rises above him in the air,
he wants her and he does not want her, he wants
her with the promise of that fullness.
Consider this approaching train in which the conductor whistles,
rings the bell and shouts
as if refusing to believe they are deaf.
Consider, my soul, the deafness
and the man, its earthly vehicle.
The train stops, the conductor whispers
May you win the lottery and spend it all on doctors!
The woman straightens her coat, and laughs ---
" One of us had to stop first, sir. I couldn't. "
Kaminsky, Ilyá. Bailando en Odesa ( Edição Bilingue). Madrid: Libros del Aire, 2012, p 116.
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20/04/13
" American Tourist "
In a city made of seaweed we danced on a rofftop, my hands
under her breasts. Subtracting
day from day, I add this woman's ankles
to my days of atonement, her lower lip, the formal bones of her face.
We were making love all evening ---
I told her stories, their rituals of rain: hapiness
is money, yes, but only the smallest coins.
She asked me to pray, to how
towards Jerusalem. We bowed to the left, I saw
two bakeries, a shoe store; the smell of hay,
smell of horses and hay. When Moses
broke the sacred tablets on Sinai, the rich
picked the pieces carved with:
"adultery" and "kill" and "theft,"
the poor got only "No" "No" No."
I kissed the back of her neck, an elbow,
this woman whose forgetting is a plot against forgetting,
naked in her galoshes she waltzed
and even her cat waltzed.
She said: "All that is musical in us is memory" ---
but I did not Know English, I danced
sitting down, she straightened
and bent and straightened, a tremble of music
a tremble in her hand.
Kamínsky, Ilyá, Bailando en Odesa (Edición bilingue). Madrid: Libros del Aire, 2012, pp 32 - 34.
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19/04/13
Estavas, linda Inês, posta em sossego,
De teus anos colhendo doce fruito,
Naquele engano da alma, ledo e cego,
Que a Fortuna não deixa durar muito,
Nos saudosos campos do Mondego,
De teus fermosos olhos nunca enxuito,
Aos montes insinando e às ervinhas
O nome que no peito escrito tinhas.
Do teu Príncipe ali te respondiam
As lembranças que na alma lhe moravam,
Que sempre ante seus olhos te traziam,
Quando dos teus fermosos se apartavam;
De noite, em doces sonhos que mentiam,
De dia, em pensamentos que voavam;
E quanto, enfim, cuidava e quanto via
Eram tudo memórias de alegria.
De outras belas senhoras e Princesas
Os desejados tálamos enjeita,
Que tudo, enfim, tu, puro amor, desprezas,
Quando um gesto suave te sujeita.
Vendo estas namoradas estranhezas,
O velho pai sesudo, que respeita
O murmurar do povo e a fantasia
Do filho, que casar-se não queria,
Camões, Luís de. Os Lusíadas ( Canto III, 120 - 122 ). Lisboa: Empresa Lit. Fluminense, 7ª Edição, p 141.
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18/04/13
" Solo Para Voz Femenina "
Si te marchas, amor, lloverá;
llama la soledad que viene a visitarme
y yo maldeciré mi destino;
bendeciré en cambio tus dias.
Igual que un vendaval diste en mi vida
y cayeron mis muros igual que bastidores.
Has destrozado el techo de mi casa
y no me has dado un nuevo amparo.
Me moría mil veces. Y aquí apareciste.
Quise la dicha, estar cerca sin ser molesta.
Cómo ibas a oír tú mi silencio
si ni una sola vez me has escuchado.
Kaléko, Mascha. Tres Maneras de Estar Sola. S/c.: Editorial Renacimiento, 2012, p 125 (Tradución de Inmaculada Moreno).
O Júri do PRÉMIO LITERÁRIO GLÓRIA DE SANT' ANNA 2013, constituído por:
FERNANDA ANGIUS
TERESA ROZA D' OLIVEIRA
EUGÉNIO LISBOA
VICTOR OLIVEIRA MATEUS
e AMÉRICO MATOS,
elegeu como finalistas do referido Prémio as seguintes obras:
"O Poeta Diarista e os Ascetas Desiluminados " de EDUARDO WHITE
"Estrada sem Asfalto " de CUSTÓDIO DUMA
" Livro Mulher " de ADELINO TIMÓTEO.
O vencedor do presente Prémio Literário será revelado publicamente no dia 15 de Maio de 2013.
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" Versos Para Ningún Salterio "
No quisiera ser Dios en estos tiempos
y reinar resguardado tras las nubes
omnisciente de bombas y cañones
que escupen a mis hijos roja muerte.
Qué penoso escuchar un coro de ángeles
si por la tierra suenan los llantos de los niños.
Diosabe que por nada me cambiaba
con el Querido Dios allá en el cielo.
Pienso que semejante maquinaria
de oscuridad y pirotecnia obliga.
Ha realizado acaso algún milagro
como hiciera en sus tiempos en Egipto?
Alabad al Señor que calla! En tales tiempos
- y perdona, Pastor - es el silencio un crimen.
Sin embargo parece que Su gloria es no hablar
ni siquiera a favor del Cordero más manso.
El Señor Sabaoth pasea por el bosque de las nubes.
Lo que yo opine a Él le importa un rayo.
No quisiera ser Dios en estos tiempos.
Y cómo se lo explico yo a mi hijo?
Kaléko, Mascha. Tres Maneras de Estar Sola. S/c.: Editorial Renacimiento, 2012, pp 27 - 29 ( Tradución de Inmaculada Moreno).
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15/04/13
Mas um velho, de aspeto venerando,
Que ficava nas praias, entre a gente,
Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes a cabeça, descontente,
A voz pesada um pouco alevantando,
Que nós no mar ouvimos claramente,
Cum saber só de experiências feito,
Tais palavras tirou do experto peito:
" Ó glória de mandar, ó vã cobiça
Desta vaidade, a quem chamamos Fama!
Ó fraudulento gosto, que se atiça
Cua aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles exprimentas!
Dura inquietação d'alma e da vida,
Fonte de desemparos e adultérios,
Sagaz consumidora conhecida
De fazendas, de reinos e de impérios!
Chamam-te ilustre, chamam-te subida,
Sendo dina de infames vitupérios;
Chamam-te Fama e Glória soberana,
Nomes com quem se o povo néscio engana.
A que novos desastres determinas
De levar estes Reinos e esta gente?
Que perigos, que mortes lhe destinas,
Debaixo dalgum nome preminente?
Que promessas de reinos e de minas
De ouro, que lhe farás tão fàcilmente?
Que famas lhe prometerás? Que histórias?
Que triunfos? Que palmas? Que vitórias?
Mas, ó tu, gèração daquele insano
Cujo pecado e desobediência
Não sòmente do Reino soberano
Te pôs neste desterro e triste ausência,
Mas inda doutro estado, mais que humano,
Da quieta e da simpres inocência,
Idade de ouro, tanto te privou,
Que na de ferro e de armas te deitou:
Já que nesta gostosa vaidade
Tanto enlevas a leve fantasia,
Já que à bruta crueza e feridade
Puseste nome "esforço e valentia",
Já que prezas em tanta quantidade
O desprezo da vida, que devia
De ser sempre estimada, pois que já
Temeu tanto perdê-la Quem a dá:
Camões, Luís de. Os Lusíadas (IV 94 - 99). Lisboa: Empresa Litª Fluminense, 7ª Edição, pp 170 - 171.
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" A Mellhor Oferta" de Giuseppe Tornatore com Geoffrey Rush (Virgil Oldman), Donald Sutherland e Jim Sturgess.
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Os sentimentos humanos são como a obra de arte: nunca se consegue distinguir o que neles é verdadeiro das falsificações bem conseguidas. Conseguir-se-á separar na amizade e no amor aquilo que neles é autêntico e verdadeiro do que aí não passa de mentira e mero logro? Não, não se consegue e Virgil Oldman, um leiloeiro bem sucedido que ousa amar uma jovem desconhecida e confiar num amigo, aprenderá essa lição à sua custa e com um alto preço. Nenhum homem maduro deve mostrar o seu tesouro à primeira jovem que insiste em amar, aliás, o Fedro de Platão já começava exactamente com este dilema, mas à tese do filósofo, o cineasta contrapõe os riscos que corre quem não sabe separar as águas, isto é, não há qualquer garantia para quem demonstre o que tem de mais valioso e se, mesmo assim, insiste nessa demonstração está por sua conta e risco: esta parece ser a lição que o realizador pretende fazer passar. Expor uma obra de arte, ou um sentimento, é sempre um convite ao roubo, à traição: roubar uma parede cheia de quadros ou atraiçoar um mundo interior não faz, para quem rouba, qualquer diferença. Um filme a não perder, uma lição a manter intacta. Excelentes interpretações com Geoffrey Rush no seu melhor. Não descurar também a grande música de Morricone.
André Téchiné, em Les Voleurs, e Woody Allen, em Match Point, já tinham andado à volta deste tema: Téchiné de um modo bem mais labiríntico, enquanto que Woody Allen e Tornatore com um rigor na caracterização psicológica das personagens, que eu considero perfeito.
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12/04/13
" Animais Que Brilham "
Amar é perder a cara para ganhar a do outro
a de todos os outros, múltiplo: o espasmo
Na linha das zebras que se espalha até à loucura
Perde-se, entra nos teus olhos, procura um fio condutor
Feito só de energia quente, até à elegia última
Ao mais perfeito abraço, ao beijo mais puro,
Procurar é ter sede, gastar todas as línguas, entrelacá-las
Até à loucura, ganhar uma nova e única, em tudo fluorescente
sobe pela medula a febre dos girassóis, o seu caule
Cheio de leite quente e gordo de baleia, cheio de espera condensada
e marítima;
Só o amor permite ver mais longe:
cão guia cego que procura uma vontade nova
Os olhos são o espelho da alma e os amigos são o espelho de deus
Acende um Farol em cada praia. Não esperes os navios. Entra em todos os seus porões sem aviso - Recheia os capitães de Susto - Enche os porões de riso e espasmo... Penteia-os com gel de golfinho. Sempre estive perto da loucura, se não fui ela própria, sempre quis ter bigodes púrpura e ser só a chuva lá fora -
Nunca quis ser um poeta, só quis ser um navio em chamas: Um navio violado pelo seu tio, todas as manhãs e todas as tardes, um navio que à noite lê Bataille - Um Navio que se afasta dos outros navios se não tiver cuidado, um navio que só quer ser ponte,
limite e União. Um navio que com os seus óculos de Sol, escreve na sua rota: - Não existe o que se escreve nas rotas -
Um navio que mesmo assim escreve e insiste em escrever, seja no osso de uma namorada morta, seja no computador, seja em rolo de papiro, em pergaminho, em papel, em folha de gelatina, em mármore, em porta de casa de banho, em quadro (pode ser com unhas ou com dentes) em areia molhada, no braço ou nas costas em tatuagem num deserto mexicano, num campo relvado, a chantilly num bolo de chocolate, no lodo, na lama, no gelo com patins, na cerâmica, na argila, no fogo, desenhando um rasto de gasolina, com urina num ladrilho seco - Não interessa o suporte, mais ou menos perene, ele só prova a nossa inocência, a nossa necessidade de partilhar -
A literatura só pode ser União... Um navio que escreve rápido no ar e em fumo de cigarro
( são precisos bons reflexos e ante-braço forte) - A LITERATURA TEM DE SER, É UNIÃO.
Nunca quis ser um poeta, sempre quis ser um espelho colocado no centro da Austrália, sempre quis ser a "fome de gente" que os espelhos têm - Pequenos fios dourados, Guardar uma coisa qualquer, um hipermercado, um segredo, proteger essa coisa dos lobos; Ser vários cangurus espalhados pelo deserto reflectidos na minha cara fosca, de um e do outro lado, uma cara fosca que é só deserto espelhado carregado de nuvens vermelhas no vidro e na sede de ter Muitas Línguas - Deserto Compositor a Criar um Requiem em Braille para que os cegos cantem uma Osana Perfeita -
(...)
Não interessa a escolha do caminho, mas a intensidade com que se o percorre, seja ele um ou em tudo múltiplo e comprido. Deserto a abraçar deserto, deserto a espalhar-se, vermelho na perda por deserto e deserto, deserto com sede de pessoas.
Ó sombra da respiração
Minha mãe
Que abandonaste teu filho às margens de uma estrada grande
Parco de tudo o que existe menos de ignorância
Altiva como o nada que nos assola pela manhã
Assola à tarde e nos assola de novo na aurora
Minha mãe
Sombra da respiração de onde vim
Desenha uma porta neste caracol vazio que é a nossa vida
Deixa-me sair de mim e de ti
Que nada aconteceu entre nós que não se possa apagar
Como a luz que acontece às vezes no campo nas noites escuras
Ó minha sombra de respiração
De quem sou filho e filho também do que nada sei
És a responsável
Pelo desequilíbrio com que se começa a vida
Por tudo o que cai e se desfigura
Muitos ou apenas poucos dias depois
Meu coração é do tamanho do escuro
É à porta de mim que se faz luz
Não tenho dores em lugar algum para mostrar
Há em mim uma parte de todos
Que se espalha entre nós como sémen
Um humano desperdício vingativo
Tenho a cabeça derramada na laje fria
E não é a primeira nem será a última
Escrever da dificuldade de respirar
Da dificuldade de ver que vim de onde vim
É crer na noite e no fim de tudo
Crer é um enorme ponto final
Miranda, Paulo José. Cintilações da Sombra, antologia poética. Fafe: Editora Labirinto, 2013, pp 59 - 60 (Organização de Victor Oliveira Mateus).
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Atirei-te com um poema
não pela porta, nem pelo tubo de escape: deixei-to preso
no limpa-vidros Atirei-te com um poema, mas tu
não estavas durante mais de três dias não vieste
a casa e o meu pobre poema ali ficou: perdido
imerso no ruído dos outros carros, no passar fétido
de todas as errâncias, que não a minha
sempre a ler sonhos na frieza das ruas
Atirei-te com um poema
escrito por outro que não eu: deixei-to preso
no limpa-vidros, para que te limpasse o dia
para que te abrisse o horizonte
nas riscas brancas de um qualquer navio
ou nas malhas acesas da madrugada
quando me perco na sedução vaga do teu olhar
Sei que irás suspeitar de mim
pensarás que ando agora pelas ruas
atirando poemas
como pássaros a todo o rosto entrevisto
no clamor sórdido dos dias
Irás supeitar deste mistério que é o meu para ti
enquanto eu, artilhando a minha-espingarda-dos poemas,
te preparo este, para ser mais certeiro, mais eficaz
Este poema que te desperte,
que te traga de volta, que
Mateus, Victor Oliveira. A Noite e a Voz. Lisboa: Universitária Editora, 2001, p 47 (Prefácio de Ana Paula Dias).
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Sessão de apresentação do livro de poesia “Cintilações da Sombra” na Livraria Pó dos Livros, em 21 de Março 2013 . A literatura e a poesia, esses milagres! . . Muito boa tarde a todos os presentes.
E começo por agradecer a Victor Oliveira Mateus este convite para apresentar o livro – Cintilações da Sombra – conjuntamente com a Maria João Cantinho de quem sou amiga e a quem reconheço um importantíssimo e um superior valor poético.
Todo o começo se prende com alguma coisa e, sendo assim, inicio a minha apresentação com uma citação de François Mauriac,
Diz-me o que lês e eu dir-te-ei quem és. Mas conhecer-te-ia melhor se me dissesses o que relês.
Todos os poetas habitantes deste volume são, a meu ver, de grande e inquestionável qualidade. Faltam aqui alguns nomes importantíssimos e disto mesmo já dei conta a Victor Oliveira Mateus. De todo o modo, Victor Oliveira Mateus, ele próprio um dos poetas que integram esta antologia e que foi também o organizador-coordenador deste conjunto poético, teve o maior cuidado e rigor na seleção que agora se mostra.
Li todos os poemas aqui presentes. Naturalmente que aprecio uns mais que outros, mas isso é natural. Estranho seria que os apreciasse a todos do mesmo modo e com a mesma intensidade. Aqui estão reunidos poetas que eu não conhecia e também aqui estão presentes nomes consagradíssimos da poesia portuguesa contemporânea. Há também nomes não consagrados nem consagradíssimos, mas que eu espero, realmente, que venham a ser do conhecimento de todos. Poesia que conheço bem de pessoas que mal conheço mas que reconheço com toda a minha admiração.
É pois uma escolha total, esta, a de Victor Oliveira Mateus. Uma escolha de primeira grandeza e que em nada, mas mesmo nada, nada, nada se pode comparar, nem de perto nem de longe, a tanta, mas tanta antologia “poética” que, quase todos os dias é publicada. Mal publicada. Sem critério, sem rigor, sem qualidade. Apenas para vender todos os livros, de preferência todos de uma vez logo na sessão de apresentação aos familiares, aos vizinhos, aos amigos, aos amigos dos amigos. Negócio, portanto. Pequenas satisfações. Pequenos serviços, quanto a mim de muito mau gosto e de péssima conduta que resultam num empobrecimento cada vez maior do gosto de cada um, num país com um diminuto grau de conhecimento. Já não digo cultural. Digo, de conhecimento e de interesses.
Voltando a este livro, naturalmente que não vou mencionar nomes. São todos valorosos. Muito valorosos. E a diferença está à vista. Nem vale a pena discutir. Alguém poderá afirmar: o que é bom para ti pode não ser bom para mim e vice versa.
Não! Isso é sofisma! Desconhecimento! A definição de “bom”, muito para além da sensibilidade intrínseca, além da imagética e da idiossincrasia de cada um, o “bom” tem uma definição mais não seja estética! Há bom e há mau. Na poesia, na literatura, na pintura, na escultura, na culinária, no cabeleireiro, na rádio, nas televisões, nos jornais, em todo o lado. E a fraca qualidade literária é uma realidade também.
Temos, pois aqui, um livro muito bom. Com grandes poetas. De grande e absoluto sentimento. Não são segréis, nem jograis nem trovadores. São poetas por inteiro todos os nomes aqui apresentados. É poesia o que aqui se mostra.
A arte literária é mais uma insignificância do cosmos. Quantos e quantos quilómetros de linhas já foram escritas? Quantos pensamentos gloriosos já oferecemos aos nossos deuses? Quantos restam? Quantos encantos e desencantos vamos sofrendo? O que é que aprendemos? O que é que valemos? Que interesse tem tudo?
Tanta interrogação…
A poesia é algo que, usando palavras, não se pode definir nem soletrar. É uma expressão artística ambiciosa, que usa sangue e corpo, que tem de ser livre – como todas as expressões de arte ou como a própria vida –
Deverá ser simples e compreensível como uma correnteza de água, como um estremecer de folhas de árvore.
Cito John Keats, – “Se a poesia não surgir tão naturalmente como as folhas de uma árvore, é melhor que não surja mesmo.”
Mas não é, infelizmente, o que vemos. Eu diria até que a poesia que se deixa ver através de um vidro fosco, se não fosse tudo aquilo que sabemos que é, essa dita “poesia” estaria a definhar, tal é a indigência apresentada com todo o despudor, com toda a desvergonha, numa ânsia incompreensível de notoriedade, numa sede, numa fome, quase num desespero que em nada contribui para o conhecimento real do que, na verdade, é a poesia. Nem documento social é – e isso sim, teria muito interesse histórico!
Não que não seja legítimo toda a gente escrever e dar a conhecer as suas sensações. Claro que sim! Mas sempre a mesma coisa? Não há mais nada para desenhar que não sejam amorosos e delambidos poemas de amor? O mundo resume-se a si próprio? É tudo poesia? Frases colocadas em fila, umas por debaixo das outras, sem nexo nem melodia? É tudo poesia?
Também Hélia Correia diz em entrevista a Ana Marques Gastão em o “Falar dos Poetas”, edições Afrontamento – “É uma aberração chamar poesia à expressão de sentimentos em versinhos. A deriva semântica deu nisso e eu não posso deixar de indignar-me.”
E eu digo: sim senhor! Tudo é legítimo. Todas as vozes são para se ouvir, umas expressando-se melhor, outras pior, mas todas as vozes devem ser ouvidas. Não chamem é poesia a tudo o que se cozinha, a tudo o que se come, engole e regorgita. Haverá outras definições, certamente.
Quanto a mim, o papel da literatura e da poesia não é explicar o mundo. A literatura é o próprio mundo. A poesia é o próprio mundo. Porque são sentimentos, ideais, histórias experimentadas, visitas, efabulações, desenhos de memórias, conquistas, alegria e desespero. As palavras escritas devem formar um todo compreensível, – um romance, um conto, um poema. As palavras que servem as ideias,têm de ser uma dádiva. As palavras não podem viver subterraneamente de modo incompreensível ou navegar ao sabor da moda; as letras não devem agrupar-se em palavras que não tenham significado. Isso não é bom. Não é essa a interrogação que precisamos. Não é isso que perdura. Não é isso que prende. E está à vista de todos.
O pensamento existe. A estética da linguagem, também existe. O ideal também existe. As histórias existem. Os livros existem. A pessoa existe e a pessoa é a interrogação. É a pessoa que escreve histórias que deseja que a outra pessoa as leia, mas sobretudo, que as compreenda.
Não me atribuo, pois, o direito de ter sequer a pretensão de me pôr a analisar este livro ou seja o que for. Quando digo – analisar – estou a referir-me a uma situação teórica ou académica ou então, daquelas conversas que não são entendíveis por um ser humano normal, de atitude simples. O que eu quero dizer é que quando emito uma opinião, falo com o que o meu coração e os meus sentimentos e os meus poucos conhecimentos, ditam. Nada de intrincado e obscuro, portanto. A clareza e simplicidade acima de tudo.
Ao ler-se este livro fica o sentimento, o pensamento, reflexão sobre a vida, sobre a humanidade, sobre a sua verdade, principalmente sobre a sua verdade, tudo traduzido em poesia. Este é um livro de sentimentos. Procura incessante duma certa alegria, talvez.
E, finalmente, do meu entendimento da poesia, amiga com quem convivo desde que me conheço, desde que comecei a ler, posso dizer
Que não é estado de espírito; que não é necessidade; nem intempérie de amor, nem rumor ou piedade, nem doença nem saudade.
Não é, certamente, um acumular de palavras num esforço patético de dar voz aos amores e dar voz a coisa nenhuma. A poesia é para ser lida e observada meticulosamente, é para ser sorvida com todo o cuidado, é para ser apreciada palavra por palavra, frase por frase, conceito por conceito porque toda ela é densa, sofisticada, significante.
A poesia, o texto poético nasce da vida e acompanha a vida numa união imperceptível que se adensa na progressão infinita, que se espraia e se entende e purifica e anima e constrói. É uma arte. E como toda a arte tem uma linguagem que permite tudo, sempre! As obras e os actos do homem ou se condenam ou se purificam e a poesia ou os eleva ou os atinge.
Um livro de poemas não é algo que se devore instantaneamente. O leitor recebe a poesia preparado para a receber. Não porque um poeta seja uma pessoa diferente das outras. A poesia é que é uma arte distinta, é uma arte de palavras e nada tão difícil de saborear como uma palavra nascida e escrita e alinhada que pretende dizer sobre a alma, sobre a vida, sobre os Homens. A poesia pode dizer tudo o que quiser. Pode ser lamacenta ou transparente, vertigem ou luz do luar.
Termino. Desde 1999 que se celebra o dia 21 de Março como o Dia Mundial da Poesia sendo um dos seus propósitos divulgar, ensinar e promover a poesia em todo o mundo.
Foi, pois, e em boa hora, apresentado e divulgado ao público português, resplandecente na sua cintilação poética e sem sombra de dúvida, a antologia “Cintilações da Sombra”. Desejo-lhe um futuro caleidoscópico e radiante.
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CRISTINA CARVALHO
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( texto protegido por direitos de autor)
21 de Março de 2013 em livraria Pó dos Livros na apresentação do livro de poesia “Cintilações da Sombra” – Labirinto Editora.
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NOTA - Este texto, postado aqui com o conhecimento da autora, encontra-se, no entanto, protegido pela legislação relativa aos Direitos de Autor.
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