Uma alegoria ao correr da pena…
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Quando eu era menino, acedíamos à
quinta de duas formas: por uma porta que um tio-avô mandara fazer nas traseiras
de sua casa ou por um portão que a caseira, morando no outro extremo das
habitações, tinha no seu quintal. Geralmente, eu e os meus primos escolhíamos a
primeira alternativa. Certo dia, contudo, a minha avó, por uma questão de
colheitas e de dinheiros, incompatibilizou-se com o irmão: mandou fechar o
extenso corredor que ligava as duas casas, deitou abaixo uma das paredes
traseiras e, uma vez com acesso directo à quinta, ordenou que se fechasse o
poço a cadeado. Os meus pais ainda a tentaram persuadir com o célebre argumento
de que água não se nega a ninguém, ao que ela respondia, célere e inflexível: Nem a honra, nem a dignidade! Minha avó
nunca mais falou ao irmão, considerando sempre que aquilo que os distinguia
jamais poderia ser colmatado por quaisquer tipos de elos ou afinidades. Eu e os
meus primos passámos a ter dificuldades acrescidas nos nossos jogos e
brincadeiras, já que o meu tio-avó, por vezes, vingava-se em mim e nos netos: Eles hoje não saem; Eles hoje têm de
estudar, etc. No entanto, quando nos encontrávamos todos era uma festa: os
mais velhos subiam às árvores à cata de ninhos, as raparigas preferiam as
cavalariças e o picadeiro, um ou outro corria atrás dos gansos (imagem que mais
tarde me daria um certo jeito para um poema da Antologia da Hariemuj!) de
vergasta em punho, quanto a mim – e excluindo o descarregar dos porcos, com os
seus guinchos aflitivos, de que nunca gostei – ia para um lado qualquer dos que
eles escolhessem. Mas – e para confessar – aquilo que mais me seduzia era ficar
a observar o enorme galinheiro: era um enorme edifico que os meus bisavós
tinham mandado fazer entre três pilares que haviam pertencido a um moinho de
vento… eu ficava fascinado a observar a ordem que naquilo tudo havia: as
diversas capoeiras estavam unidas entre si por estreitas passagens, todavia, as
galinhas jamais trocavam de divisória e quando Adelaide (a única mulher que até
hoje vi de pera e bigode e a única empregada de que eu fugia sempre sete a
pés!) vinha com as sêmeas, o milho ou as hortaliças, a aproximação ao comedouro
era uma autêntica cerimónia de poder e de submissão: elos de vassalagem, medos,
rituais de sedução levados a cabo por alguma ave infortunada visando conseguir
algo -- Deuses, como a minha observação infantil do galinheiro me viria a ser
útil vida afora, quantas e quantas vezes a reencontrei sob disfarces múltiplos
e camuflagens torpes! Mas – e deixem-me confessar – daquilo que eu gostava
mesmo, nessa altura e durante essas observações, era das minúsculas galinhas da
India: indiferentes às regras das grandes, saltavam de divisória em divisória,
comiam e dormiam onde lhes apetecia e ao pé de quem lhes apetecia, era como se
fossem aves de outro mundo, de um mundo paralelo que escapava à normalização
vigente do galinheiro uniformizado em função de regras e submissões… As
galinhas da India, naquela sociedade perfeitamente hierarquizada, poedeiras de
ovos desprezíveis, com a sua figura e cantar frágeis, não serviam naquela
quinta para absolutamente nada… para nada é como quem diz: a mim serviram-me
para apurar o ver, para me ensinar a afastar de aparências e fraudes, para
evitar os caminhos demasiado tortuosos e investir, apenas, naquilo que a mim se
possa dar -- em autenticidade e com rasgos de absoluto. V.O.M. (Lx, 24/4/2013,
22h09)
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