.
Deu naquelas palavras clara mostra o arcebispo de Braga de saber que Deus e Alá é tudo o mesmo, e que remontando ao tempo em que nada e ninguém tinham nome, então não se encontrariam diferenças entre mouros e cristãos senão as que se podem encontrar entre homem e homem, cor, corpulência, fisionomia, mas o que provavelmente não terá pensado o prelado, nem tanto lho poderíamos exigir, tendo em conta o atraso intelectual e o analfabetismo generalizado daquelas épocas, é que os problemas começam quando entram em cena os intermediários de Deus, chamem-se eles Jesus ou Maomé, para não falar de profetas e anunciadores menores. Jé é muito de agradecer-lhe que vá tão fundo na via da especulação teológica um arcebispo de Braga armado e equipado para a guerra, com a sua cota de malha, o seu montante suspenso do arção da mula, o seu elmo de nasal, quiçá não lhe permitam as mesmas armas que leva chegar a conclusões de humanitária lógica, pois já então podia ver-se até que ponto os artefactos de guerra podem levar um homem a pensar diferentemente, sabemo-lo hoje muito melhor, embora ainda não o suficiente para que retiremos as armas a quem, no geral, delas se serve como único cérebro. Porém, longe de nós a intenção de ofender estes homens ainda pouco portugueses que andam a combater para criar uma pátria que lhes sirva, em campo aberto quando for necessário, pela traição quando convenha, que as pátrias foi assim que nasceram e frutificaram, sem excepção, por isso é que, tendo caído em todas, pode a nódoa passar por adorno e sinal de mútua absolvição.
.
José Saramago in "História do Cerco de Lisboa", Editorial Caminho, 1989, pp 202 - 2o3.
.