08/06/10

Quando o xá, algumas semanas antes, proibiu o kula pahlavi - baptizado com o seu nome - e recomendou em seu lugar o uso de chapéus europeus, autorizando ao mesmo tempo que as mulheres deixassem o chador e saíssem para a rua sem véu, houve aqui e ali notícia de agitações, sobretudo nas cidades sagradas. O kula era um boné de pala bastante desengraçado, feio mesmo, que dava aos homens um ar de escroques e vagabundos, mas que ainda assim permitia virar a pala para a nuca e seguir o preceito de tocar no chão com a testa durante as orações, sem descobrir a cabeça, Isso era impossível com chapéus europeus - um chapéu de feltro, um chapéu de cco, um panamá -, e por isso os mulás, acreditando que chegava a hora, faziam as suas prédicas em reuniões secretas ou em público, no adro das mesquitas.
Os jornais falavam do júbilo com que o povo recebia esta novidade da civilização, e os ministros e governadores das províncias ofereciam jantares onde as esposas convidadas teriam de se apresentar sem chador. A multidão apertava-se à entrada para ver o espectáculo dos fiacres que chegavam e donde desciam as senhoras, confusas e profundamente envergonhadas. Durante a refeição, os criados faziam desaparecer no guarda-roupa os kulas dos convidados que, quando deixavam os seus anfitriões e para não terem de regressar a casa com a cabeça descoberta, compravam um dos chapéus faranghi, os chapéus estrangeiros, que tinham à sua disposição. Uma organização exemplar, ocidental mesmo! Pedro, o Grande, não fizera melhor para privar os boiardos das suas barbas asiáticas! Estas barbas perduraram por mais tempo na Pérsia. Por outro lado, os diplomatas iranianos estão agora autorizados a apresentar-se de bicorne, que por sua vez foi introduzido no Ocidente progressista no tempo da Revolução Francesa(...). Na Hungria, para terem assento no Parlamento e darem provas do seu patriotismo, os magiares têm de deixar crescer longos bigodes e de passar as pontas por brilhantina, de maneira que elas se mantenham ousadamente reviradas. Mas onde irá o xá encontrar um modelo para a introdução dos bons velhos direitos do homem?
(...) Foram os dias mais quentes do Verão persa. Os jardins em Shemiran, cercados por muros demasiado altos, cheios de vegetação demasiado densa, eram quentes e abafados como estufas. Os mosquitos enxameavam os lagos de águas chocas. Tive malária pela segunda vez. À noite, o ar lá fora arrefecia um pouco, mas a febre subia. Quando pude sair novamente do jardim de casa, as cercanias de Teerão estavam calcinadas. Os jardins de Shemiran eram duas ilhas escuras no amarelo monótono e leproso. À minha frente, na estrada, seguia um jovem oficial, os sapatos e as polainas brancas do pó. Trazia uma pasta e uma caixa com o capacete. Encostei o carro e deixei-o subir. Ele sorriu, o suor corria-lhe pelo rosto queimado.(...) A grande praça de Tedrzriz estava vazia, tirando uns poucos fiacres com os seus cavalos brancos e famintos que pareciam anestesiados à torreira do sol.(...) Sombras e escuridão caem sobre mim como ondas. O cheiro a fresco, da terra, das folhas, uma álea e as raízes das árvores que rompem o caminho e forçam o carro a derrapar quando se tenta fazer a curva em grande velocidade. Subo sempre em terceira até diante da casa! Deixo o carro à sombra, saio, corro pelo alpendre branco, passo as portas duplas feitas de um mosquiteiro fino. Da sala chega o som de um piano. Zadikka ainda está a praticar, penso eu, aqui continua tudo igual - e respiro fundo, depois do medo inominável durante a viagem ao longo da terra aberta, exausta e transfigurada pelo sol.
(...) A irmã mais velha de Zadikka está ao pé de mim, deitada à sombra de uma grande árvore. Trouxeram-nos almofadas e água tão gelada que os copos ficam embaciados.
- Vou-me embora - disse eu.
- Vais ter com os teus amigos ingleses?
- Sim. Vou para o acampamento deles, no vale de Lar.
- Quando?
- Amanhã.
Ficámos em silêncio por um momento. Ouvíamos os gritos que chegavam do campo de ténis, a batida seca das bolas.
.
Annemarie Schwarzenbach in " Morte na Pérsia", Tinta da China Edições, Lisboa,
2008, pp 18 - 22.
.