23/07/10

" Oh, mar, dá-me a tua cólera tremenda, / eu passei a vida a perdoar, "

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"Diante do Mar"

Oh, mar, enorme mar, coração feroz
de ritmo desigual, coração mau,
eu sou mais tenra que esse pobre pau
que, prisioneiro, apodrece nas tuas vagas.
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Oh, mar, dá-me a tua cólera tremenda,
eu passei a vida a perdoar,
porque entendia, mar, eu me fui dando:
"Piedade, piedade para o que mais ofenda".
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Vulgaridade, vulgaridade que me acossa.
Ah, compraram-me a cidade e o homem.
Faz-me ter a tua cólera sem nome:
já me cansa esta missão de rosa.
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Vês o vulgar? Esse vulgar faz-me pena,
falta-me o ar e onde falta fico.
Quem me dera não compreender, mas não posso:
é a vulgaridade que me envenena.
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Empobreci porque entender aflige,
empobreci porque entender sufoca,
abençoada seja a força da rocha!
Eu tenho o coração como a espuma.
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Mar, eu sonhava ser como tu és,
além nas tardes em que a minha vida
sob as horas cálidas se abria...
Ah, eu sonhava ser como tu és.
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Olha para mim, aqui, pequena, miserável,
com toda a dor que me vence, com o sonho todo;
mar, dá-me, dá-me o inefável empenho
de tornar-me soberba, inacessível.
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Dá-me o teu sal, o teu iodo, a tua ferocidade,
ar do mar!... Oh, tempestade! Oh, enfado!
Pobre de mim, sou um recife
E morro, mar, sucumbo na minha pobreza.
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E a minha alma é como o mar, é isso,
ah, a cidade apodrece-a e engana-a;
pequena vida que dor provoca,
quem me dera libertar-me do seu peso!
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Que voe o meu empenho, que voe a minha esperança...
A minha vida deve ter sido horrível,
deve ter sido uma artéria incontível
e é apenas cicatriz que sempre dói.
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Alfonsina Storni in "O mar na poesia da América Latina", Assírio & Alvim,
Lisboa, 1999, pp 131 - 133 (selecção e ensaio de Isabel Aguiar Barcelos, tradução
de José Agostinho Baptista)
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