11/02/12

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Estranha, mas verdadeiramente, o pensamento de Agostinho da Silva, homem austero, reservado e humilde, possui fortes afinidades com o de Natália Correia, uma poetisa do erótico, do privilégio civilizacional atribuído à mulher, da exuberância fáustica dos sentidos e dos sentimentos, autora extrovertida, noctívaga de bares e botequins, recolhendo-se de madrugada e levantando-se com o esmorecer da tarde.
De facto, a publicação de uma centena de páginas inéditas, recolhidas do espólio de Natália Correia por José Eduardo Franco e José Augusto Mourão, veio tornar mais saliente um conjunto de afinidades intelectuais e espirituais entre ambos os autores. Relendo estas páginas, constatamos a existência de três teses transversalmente presentes na obra dos dois autores:

1) Uma nítida postura militante contra o racionalismo dominante nas sociedades actuais, causa, não de progresso, mas de  decadência;
2) A exigência de uma urgente e radical alteração na actual sociedade através da presença do sagrado no homem;
3) O resgate do modelo arquetipal da cultura portuguesa em torno do culto do Espírito Santo, cuja última Terceira Idade é por ambos identificada com o Quinto Império.

Com efeito, para além da comum pulsão de infinita liberdade, que a ambos forçou uma postura social e intelectual contra o regime do Estado Novo, constata-se nos dois pensadores a existência de uma pulsão revolucionária que continuamente lhes altera a existência, em Natália concretizada nos seus diversos casamentos (situação escandalosa para a sociedade puritana das décadas de 50 a 70) e em Agostinho no modo contestatário que, ao longo da sua vida, presidiu às suas relações com as intituições cristianizadas do Estado Novo (Escola, Igreja, Universidade, Estado). Assim, este triplo conjunto de teses desenha uma comunidade de pensamento, insuspeito até 2005, entre a autora de Mátria e o autor de Vida Conversável.
Entre todas as escritoras portuguesas da segunda metade do século XX, Natália Correia constitui-se como a que mais afirma a sua obra literária numa atitude nitidamente contestária da racionalidade lógica e tecnológica do actual estado da civilização ocidental. Toda a sua obra no campo da poesia e do ensaio se constitui como um forte libelo contra o domínio da razão sobre a sensibilidade, bem como, do ponto de vista social, contra o domínio da lógica do interesse da razão de Estado contra a justiça presente no sentimento espontâneo da população (...) Natália Correia crê em tudo o que a Igreja Católica recalcou ao longo da sua história: a Grande Deusa, ou Deusa-Mãe, pudicamente transfigurada pela Igreja Católica em Virgem Santa ou Imaculada Conceição, os atlantes, as fadas, a vidência maravilhosa, a carne que enfeitiça o Além; crê na fusão quotidiana entre tempo e eternidade, na força do Amor profano, num futuro neo-pagão que já houve antes, no politeísmo dos deuses. Dito de outro modo, Natália Correia crê na existência de uma alternativa ao actual estado da Civilização Ocidental, não fundada em projectos contemporâneos de futuro, como o marxismo ou o ecologismo radical, mas na ressurreição com novas qualidades de momentos civilizacionais e culturais arcaicos onde fora possível "harmonizar as partes dissonantes" através de um "empenho... mais fecundo". (...)
Assim, desde a década de 1960, com a publicação de Mátria, de Madona, da peça de teatro O Encoberto, e da organização da Antologia da Poesia Portuguesa Erótica e Satírica, bam como das meditações nascidas a partir do ensaio Descobri que era Europeia, Natália Correia peregrina poética, ficcional e ensaisticamente em torno dos limites e das margens da nossa sociedade, desvinculando-se totalmente da atracção das duas alternativas ideológicas oferecidas - o capitalismo e o comunismo, como confessa tanto em Poesia de Arte e Realismo Poético como em Descobri que era Europeia, explorando correntes estéticas e temas recalcados ou marginalizados pelas estéticas dominantes, como o evidencia o apego ao surrrealismo e ao romantismo, a investigação sobre a condição da mulher e a inquirição sobre as origens da poesia portuguesa.
Como se constata, coexiste nas obras de Natália Correia, ao longo das décadas de 50 e 60, um apertado e agressivo cerco envolvente da essência racional da sociedade europeia contemporânea, um fundo desprezo pelo novo sentido civilizacional estabelecido pelos estados Unidos da América relativamente aos valores humanistas europeus, e a busca de uma alternativa civilizacional, redentoramente apresentada em Mátria e em Madona, para de modo ficcional explodir posteriormente nos contos de A Ilha de Circe, sobretudo no conto "Mãe, Mãe, porque me abandonaste?". Constituía-se assim o seu pensamento maduro, ou, se se quiser, o tema central e irradiante por que se entende tanto cada parte como a totalidade da sua obra: a crença na existência de um complexo de valores femininos civilizacionalmente recalcados e culturalmente violentados pela nossa civilização, simbolizados arcaicamente pelo culto da "Grande Deusa" ou "Deusa Mãe", expressão de um paganismo imanentista e naturalista assente na simbiose entre a sensibilidade do corpo e a espiritualidade da alma, que o judaísmo moisaico, o platonismo grego e o cristianismo romano e medieval decapitaram em nome da razão lógica e do poder do Estado, subjugando simultaneamente, de um ponto de vista social e político, a fonte física e mental desta primitiva sociedade pagã, orgiástica e naturalista - o universo da mulher. Neste sentido, tornar-se-ia necessário, hoje, para a autora, subverter o sentido global da civilização, resgatando-a do domínio do homem para a acomodar a um "futuro que houve dantes", isto é, aos valores femininos - eis o propósito filosófico de Natália Correia e eis o sentido da sua obra no seio da cultura portuguesa da segunda metade do século XX, praticamente só compreendido após a sua morte devido às peripécias políticas e ao ambiente de vadiagem nocturna por que superficialmente se tem aureolado a última vintena de anos da vida da autora (...).
Nos documentos publicados do espólio, Natália Correia registou a sua crença em "uma nova fé que o homem moderno possa aceitar", prenunciada através de alguns "sinais de retorno ao sagrado", libertado das cinzas do racionalismo expresso nos domínios avassaladores da tecnologia e da massificação das sociedades, que "des-significam a existência". Por outro lado, Natália Correia denuncia a sociedade actual como expressão da "androcracia mosaica", evidenciando um longo trilénio de pressão cultural e civilizacional sob o domínio de valores racionalistas vinculados à visão masculina do mundo. Neste sentido, Natália Correia considera o complexo social tecnocrático e científico actual expressão de uma razão lógica, contabilista e fria, resultado de um estado de decadência europeia que progressivamente tem vindo a desumanizar o homem, isto é, a desdignificar a existência humana no seu todo(...).
Para Natália Correia, o sagrado evidencia-se como uma força imanente ao homem e à natureza, força e pulsão que a ambos envolve, conduz e orienta, força celebrada sem mediações litúrgicas e sacerdotais, como se cada homem, na multiplicidade da sua existência, vivesse imediata, directa, sensível e sentimentalmente a unidade-pluralidade divina. O mesmo defende Agostinho da Silva com uma radical diferença: se em Natália Correia, o sagrado se estatui como força (ou energia) e pulsão imanente na pluralidade da natureza e na unidade humana, na teoria de Agostinho da Silva seriam abolidas, no futuro, todas as distinções ontológicas dicotómicas (belo/feio, bem/mal, justiça/injustiça, uno/múltiplo, essência/aparência, ser/devir, tudo/nada, Deus/criatura...), sendo, portanto, abolida a distinção imanente/transcendente, vivendo cada homem em estado de plenitude, extinguindo-se deste modo os antigos valores vinculados à propriedade, ao trabalho, ao casamento, ao Estado, renascendo a humanidade numa nova e feliz existência paradisíaca..
Se para Natália Corrreia este novo estado de existência humana consagrará a assunção de múltiplos estados dionisíacos, dando origem a uma certa forma de "politeísmo pentecostal", para Agostinho da Silva este novo estado reproduzirá a existência humana da "Idade de Ouro" ou do "Paraíso", consagrando a vivência do homem com, melhor, no seio do espírito de Deus, ou seja, do Espírito Santo. Tal como para Agostinho da Silva, para Natália Correia este mesmo espírito divino constitui-se como essência do homem, mas, para esta autora, de acordo com o privilégio atribuído na sua teoria à Grande Deusa, o Espírito de Deus ou Espírito Santo é de essência feminina. Neste sentido, não se deveria escrever "Espírito Santo", mas "Espírita Santa", correspondente à verdadeira - segundo Natália Correia, mas abundantemente contestada por José Augusto Mourão - tradução para português das expressões judaica e aramaica "Shekinah" e " "Ruah Kadesh". A civilização ocidental, desde logo na sua raiz judaica, teria subvertido a essência feminina do sagrado, correspondendo historicamente ao total abandono do estado de matriarcado e consequente passagem ao de patriarcado, e imposto o total domínio androcêntrico, recalcando a era histórica anterior - época de grande felicidade, na visão de Natália Correia. Neste sentido, o esgotamento desta nova sociedade antropocêntrica conduziria inevitavelmente tanto à re-emergência dos antigos valores femininos quanto à re-irrupção do sagrado no meio da sociedade. Assim o fora no passado, assim o será no futuro (...).
Tanto em Agostinho da Silva como em Natália Correia, o medelo arquetipal da cultura portuguesa reside na celebração do culto do Espírito Santo tal como fora praticado na Idade Média, desde o século XII, fortemente incrementado, mesmo generalizado e popularizado, pelo fervor religioso da rainha Santa Isabel. Para Natália Correia, porém - como salientámos -, o termo "Espírito Santo" conteria semanticamente um valor feminino, constituindo-se para o povo judaico a expressão religiosa da Deusa mediterrânica(...) o culto do Espírito Santo (...) surge, assim, para ambos os autores, como a matriz fundadora da cultura portuguesa e o espelho perfeito do conjunto de valores comunitários e igualitários que nortearam o Portugal medieval, fundando-lhe o arquétipo da sua cultura. A descentralização do poder por via da independência dos municípios face aos nobres, a igualitarização de todos com todos dentro dos concelhos, gerando as assembleias dos mais velhos e dos homens-bons, encontraria fundamento cultural na atitude religiosa do culto, não do Pai, símbolo do poder, não do filho, símbolo do amor e do sofrimento que resgata, mas do Espírito de Deus, símbolo da unidade de todos com todos, base do actual ecumenismo proclamado pela crença no advento da Terceira Idade do Mundo ou Idade do Espírito Santo. Do mesmo modo, fundado na crença do advento de uma futura idade paradisíaca, ganham sentido o espírito peninsular de cruzado e o espírito monástico, ambos totalmente submetidos, para a vida ou para a morte, à vontade de Deus, base filosófica da atitude ousada empreendedora dos Descobrimentos (...)
Em função das três afinidades conceptuais salientadas entre as teorias de Agostinho da Silva e Natália Correia, podemos sintetizá-las sublinhando que ambos os autores defendem idêntica postulação da cultura portuguesa como mediadora universal do anúncio de uma nova era mundial, assente na divinização do homem (...). Porém, Natália Correia enfatiza a vertente imanentista do sagrado e Agostinho a superação das antinomias imanente/transcendente pela assunção de uma vida humana plena, total e una.
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Miguel Real in " O Pensamento Português Contemporâneo 1890 - 2010 ", Imprensa Nacional - Casa da Moeda, Lisboa, 2011, pp 806 - 815.
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