Queria ser o teu pátio e a tua lua. Queria preparar, numa pira de poções, mandrágoras, elixires, encantamentos, feitiços, esconjurações, as longas sendas do extravio e da ternura, queria abrir atalhos, veredas, coordenadas de maio a maio, afluentes, regatos, estradas que jamais conduzirão ao mar, eu sei. E, embora sabendo, não vacilarei, serei como a inquebrável fibra dos vimes, pensarei sempre em ti, meu irmão, meu querido assassino, e ajoelhada junto à fonte, sem interpelar os homens, a sua vã glória, o seu desaire, gota a gota, traço a traço, desenharei sobre o pó uma cicatriz, para que ao descer a águia saiba como perdi aquele que amei.
Revolvo a lama, os montículos, as raízes, convoco os gansos, os cisnes, as garças vermelhas, talvez a caminho do sul, mas antes e no fim, existem apenas as cavernas, os ossos, o templo dos cem tigres, o gelo e o degelo, a estepe interminável, o pântano, um bote, dois remos, e eu entre as margens, abrindo os cofres, movendo os dedos. Antes e no fim existe apenas o fim. Mas tu não entendias nada, frágil duende das flautas verdes.
Respiro, parece que respiro sobre o teu ombro, agora que estás deitado. O mel espesso das colmeias que sempre descuidei, transborda nos vasos abandonados, no barro cozido onde a tua amargura se perfila.
Que animais da sede virão beber a água de um cântaro pintado de anil? Há muito que quase todos se afastaram do homem, conscientes do perigo. Levaram consigo as crias e, algures, construíram outros ninhos.
Procuraram as ramagens, taparam os covis. E os que restam, estão à nossa volta, pois sabem que não fazemos parte da legião dos malditos que se aproximam.
Baptista, José Agostinho. O Pai, a Mãe e o Silêncio dos Irmãos. Lisboa: Assírio & Alvim, 2009, 113 - 144.
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