25/06/12


 " A Tradição Não é Um Passado a Cheirar a Mofo "

                                                por  TERESA MARTINS MARQUES


No canto V da ILÍADA Homero coloca frente a frente o guerreiro aqueu Diomedes e o troiano Glauco prestes a iniciarem um combate, que acabará por não se realizar ao descobrirem que um antepassado de Glauco fora hóspede de um antepassado de Diomedes. Em vez de combaterem, preferem os guerreiros trocar as armas como prova de amizade que não será, todavia, recíproca dado que Diomedes ludibria Glauco oferecendo-lhe as suas armas de bronze em troca das de ouro do troiano. Antes de se identificaram mutuamente, notando Diomedes a extraordinária coragem de Glauco, põe a hipótese de o seu contendor ser um ente divino, o que tornaria o combate desigual. Querendo esclarecer tamanha dúvida, pergunta Diomedes:

" Quem és tu entre os homens, entre os homens mortais?/ Apenas sei que a todos te excedes em coragem. (...)/ Ou acaso pertences ao número dos divinos?/ Ah! Sendo assim, desisto de combater contigo".

Como resposta àquela pergunta, diz Glauco:

" Que importa, Diomedes, qual a minha linhagem?/ A geração dos homens é igual à das folhas,/ se o vento arranca algumas e no chão as espalha,/ ao vir a Primavera logo nascem outras./ E dos homens diremos que são como a folhagem..."

Aquela imagem de Homero, se por um lado afirma a morte como inevitabilidade - os homens caem no seu próprio Outono -, afirma também a certeza da vida como esperança que se alcança em cada renascimento - primavera do ser humano. E, se "dos homens diremos que são como folhagem", dos temas e motivos literários diremos que são como os homens e como a folhagem: passam e ficam. É Jacinto Prado Coelho quem nos diz:

" A literatura é o domínio do instável, miragem de eternidade que paira sobre a corrente dos anos e dos séculos. Um absoluto à escala humana: fica e passa."

A literatura passa e fica ao constituir-se tradição que é passado presentificado em cada nova leitura que daquele pretérito extrai novos efeitos pessoais. Somos um haver da morte, nós e o que é nosso, já que somos transitórios, isto é, estamos em trânsito de um espaço-tempo antes - a escala evolutiva das plantas, do homem, da tradição literária - para um espaço-tempo agora - que rapidamente se torna espaço-tempo-depois.

O conhecimento, a qualquer nível que o consideremos, faz parte de quem conhece e tal como o ser humano, também este é inevitavelmente transitório, sendo indefinível, porque a cada momento se represent(ific)a tornando-se tradição civilizacional, memória do conhecimento da humanidade. Memória que não se apresenta como simples e linear sucessão de épocas, interligando-se de forma a que o presente condicione o passado transcorrido, modificando a leitura que dele se faz no presente. Por isso esse passado-memória-civilizacional torna o ser humano infinitamente rico, já que é património cultural acumulado que lhe deu lastro intelectual, mas também infinitamente pobre, impedindo-o de pensar como nunca ninguém antes pensou. Aquilo que chamamos invenção, inovação em qualquer ramo do conhecimento é ínfima gota de criatividade individual que só existe como gota, porque é produto do mare magnum da cultura que lhe permitiu existir como gota e foi acumulada por sucessivas gerações.

Porque o conhecimento passado permite o conhecimento presente, nunca aquele é verdadeiramente passado nem este verdadeiramente presente. Sem Newton não teríamos Einstein. Sem Homero não teríamos Virgílio e Camões. A literatura, sendo conhecimento, não foge à inevitabilidade de ser morte que vivifica, de ser tradição que gera inovação. A obra de arte encontrará a sua autenticidade tornando-se experiência, transformando aquele que a experimenta numa interacção dialéctica, condição de comunicação e de significação, numa palavra - interpretação de uma tradição que passa e fica como documento, mas também como monumento.

Temos hoje consciência de que a tradição não existe para se venerar, mas para se conhecer. Só esse conhecimento possibilitará a criação duma nova significação, elo de uma cadeia que, não sendo já o passado, é também o passado, em translação de sentidos, corrente viva de valores em devir, como a água do rio de Heraclito, como a folhagem do bosque de Homero.
.
Nota - agradecemos à Profª Drª Teresa Martins Marques da Universidade Clássica de Lisboa ter-nos dado a sua autorização para que pudéssemos postar este seu inédito.
.