"Veneza, O Grande Canal" - quadro de Turner.
"As ruínas" (Poema I)
Quis um dia essa tarefa, a de projectar ruínas:
de começar uma coisa
como uma coisa termina.
Imaginou-as plantadas, como harpas, numa planície.
Vizinhas a coisa alguma, pois, se a alguma vizinhas,
dela se entranham as ruínas.
E repetiu essa palavra, em tantas línguas traduduziu-a,
até suspeitar-lhe a sombra, até dilatar-lhe os sinos,
até descobrir-lhe arestas, ordens, cicatrizes, até que, dentro da palavra,
soassem guerras suspensas, houvesse incêndios antigos.
Até que, dentro da palavra, a própria coisa ruísse.
E imaginou essa palavra mais do que a coisa em ruína.
E imaginou-a palavra depois de a coisa finda.
E imaginou-a num deserto, mais soprada do que erguida.
Queria suas ruínas inecessárias, daninhas,
a que os gatos viessem por um quase humano instinto.
Onde as sombras florescessem como florescem espinhos.
Cláudio Neves, In "De Sombras e Vilas", Ed. 7 Letras,
Rio de Janeiro, 2008, p 65.
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