06/11/08

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a Victor Oliveira Mateus


Tua voz no lacerar
irreparável da tarde,
é como um gesto que arde
no fogo lento do canto...
Asa de sonho a voar
nos lampejos dos sentidos
a murmurar aos ouvidos
as sombras do nosso encanto.

Pela luz que vem das formas
é que a palavra se veste
e o eco se torna agreste
ao deslizar na colina...
Que a luz quando se entorna
queima o lugar onde escorre,
até que se cansa e morre
quando o poema termina.

Com navalhas de cristal
te dilaceram o pranto
dos cilícios do espanto
que a toada mortifica...
Na esperança dum sinal
da voz do canto das águas
colhe das pedras das mágoas
a mágoa que lá não fica.

Do eu de ti tão distante
fica-te a alma que sobra
sem ter limite nem hora
por onde a ideia se tece...
É como a brisa ondulante
que leva o verso sem tempo,
escrito em folhas de vento
quando o poema acontece.

Poeta da essência pura
varre o pó das coisas velhas
no desconforto das telhas
no abrigo do momento...
Levas contigo a ternura
por onde a noite tem voz
quando cantas para nós
o que a voz leva por dentro!

Ulisses Duarte, In "Poetaneamente", Ed. Os retratados,
s/c, Out. 2008, p 62.

(Nota - Há 3/4 anos falei, pela última vez, com o poeta
Ulisses Duarte. Percebi então que era seu intento escrever
um livro onde se retratassem alguns autores. Fui colhido
este ano pela notícia da sua morte, mas nunca me ocorreu
que ele tivesse "deixado na gaveta" o meu retrato junto a
tantos outros. Numa toada clássica o Ulisses usa pedaços
de versos meus muito antigos - em itálico - para compor
o modo como me via. Foi com profunda comoção que vi
hoje este livro...)
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