"Made in China: um instântaneo de Macau"
Talvez primeiro seja o calor. Para quem gosta dele. Envolve-nos mal pomos o pé fora do jetfoil, como um abraço confortável e húmido que se cola à pele. É um calor denso e pesado, que não dá tréguas, que entra na respiração a parece conseguir chegar até à alma. Claro que há quem não o suporte. Comigo foi o reencontro com uma sensação perseguida, entrevista, de outras terras e lugares com os quais o primeiro embate é físico e só depois racional.
A seguir talvez seja o movimento incessante, qualquer coisa que pulsa duma vitalidade colorida, simultaneamente berrante, suja, kitsch e harmoniosa. Os milhares de néones, a desordem barroca do inexistente ordenamento territorial, os prédios e lojas encavalitados, as ruas labirínticas. As ruas por detrás das ruas principais a levar-nos de imediato para um território obscuro, mais silencioso, mais cinzento. Os rostos inexpressivos, as pessoas que passam por nós lado a lado nem curiosas, nem hostis, que apenas parecem não nos ver. Deambula-se facilmente por esta cidade com essa sensação de estar noutra dimensão, paralela e, como tal, impenetrável. E talvez esse seja o segundo trunfo de Macau - a liberdade de pisar um chão ao mesmo tempo familiar e estranho. Porque a sensação é de familiaridade, não haja equívocos. A calçada portuguesa, da qual só nos apercebemos ao fim de algum tempo, de tão próxima, a toponímia feita de palavras conhecidas e por vezes um pouco deslocadas, como se tivessem deslizado de outro tempo e chegado até aqui ao século vinte e um como ecos dessa errância histórica de centenas de anos que nos está nos genes. Palavras que escorregaram e se instalaram à sua maneira ingénua, desconcertante, arcaica nas tabuletas, nos anúncios, mesmo nos serviços públicos, nos domínios institucionais. Palavras portuguesas.
Talvez ainda sejam os portugueses que aqui vivem, portugueses ilhéus duma pátria idealizada ou mítica. Portugueses que falam em eles e em nós e que não são uma coisa nem outra, conformados à geografia da terra, parecidos com as tais palavras extemporâneas que povoam as ruas. Que comem em restaurantes portuguesíssimos com bandeiras do sporting ou do benfica e ao fim de vinte anos de permanência continuam a detestar a comida local que nunca provaram. Mais uma vez, surpreendentes na sua generosidade, por vezes manhosa, interesseira, mas que está lá. Que fazem questão de acolher, "ensinar" quem chega, avisar sobre as perfídias da terra. Portugueses que dificilmente voltarão a viver em Portugal, que dificilmente serão felizes noutro local, que usam o verbo ir e raramente o verbo voltar.
Podem ser os souvenirs locais, os muito típicos galos de Barcelos e os pastéis de nata egg tarts que constam serem péssimos. O cheiro doce e intenso em algumas ruas, um cheiro indecifrável a coco, os numerosos vãos de escada onde se vendem espetadas com pedaços de comida que oscila à vista entre o vegetal e o animal, tudo cozido no mesmo caldo espesso e intenso. De novo a tentação, a hesitação entre a repulsa e a prova. As pessoas a comerem na rua a toda hora, o exotismo hábil dos pauzinhos, a delicadeza de alguns sabores, a beleza de algumas composições gastronómicas. O luxo dos muitos restaurantes, o típico das barraquinhas de rua.
Ou a luz. A luz que não é luminosa a maior parte das vezes. Baça. Baixa. Uma luz sem horizonte, sem espaço. Qua às vezes pesa, que às vezes oprime amarelamente o peito. Dizem que chega a haver quarenta e cinco dias seguidos sem sol, só este contínuo manto nevoento que às tantas parece um sonho onde tudo flui fantasmagoricamente, silenciosamente e o coração começa a bater mais devagar, como nos contos de fadas em que o tempo se suspende na imobilidade do presente.
Podia ser um caso de amor. Mas Macau é também a proliferação ad nauseam das coisas acessíveis. Coisas. Objectos. Novidades. Brinquedos. Coisas que se coleccionam compulsivamente, que se adquirem, todos os dias, continuamente - porque são acessíveis. Porque são novidade. Que não se usam? Que não se desfrutam? Que não nos fazem falta? Que se têm para estarem à mão, para sabermos que estão ali quando as quisermos? Que se vão juntando até já não sabermos quais, quem, como são, qual a sua individualidade, porque nos aproximamos delas um primeiro lugar? São as compras e o consumo, é a evidência do que fizeram os economistas, os jornais ou as notícias sobre a liderança económica da China no cenário mundial. O que não deixa de ser irónico se pensarmos que o país se chama República Popular da China e tem um regime comunista. Esta insaciedade é histórica, sociológica ou é estrutural, o mundo a caminho de lado nenhum? Talvez Macau seja uma alegoria ou uma metáfora. É de certeza. Vai-se a gongbei, passa-se para a China como se diz por cá e compram-se todos os livros, todos os dvd's, todas as malas, sapatos, relógios, telemóveis de todas as marcas de todos os últimos modelos em todas as cores e tamanhos. Made in China. Igualzinho ao original, se é que o original existe. Volta-se carregado. Volta-se mais vazio?
Macau é uma casca. Penso que é preciso muito tempo para saber o que lá está dentro. Podia ser um caso de amor. Mas o amor deve ter uma profundidade mais profunda que a dos aterros, que a da terra que foi roubada ao rio e sobre a qual se construiu o admirável mundo novo dos casinos - deslumbrantes, imensos, impactantes, mas assentes num chão que não existe.
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Macau, 23 de Janeiro de 2010.
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Ana Paula Dias (Inédito)
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