29/01/10

FRANCHETTI, Paulo. Escarnho. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009. 68 p.

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Escarnho: a inabalável harmonia do diverso

Elaborar uma totalidade coesa e repleta de sentido sem perder de vista um conjunto de influências distanciadas no tempo e no espaço, conseguir uma unidade subtilmente estruturada que, contendo em si múltiplos registos e procedimentos formais, reafirma que um livro de poesia não é um agrupar aleatório de textos, mas uma totalidade orgânica com intentos bem definidos - eis a mestria alcançada por este novo livro de Paulo Franchetti.
Nesta sua obra o autor usa a sátira como forma de escalpelizar, não determinados tipos naquilo que eles são essencialmente, mas antes para submeter ao ridículo da cidade o que nesses tipos é acidental e vivenciado de modo inautêntico, isto é, não são as velhas gueixas de exacerbadas pulsões que são visadas pelo azorrague do poeta, mas aquilo que nelas é logro e trapaça (p. 44), ou que nelas se disfarça num processo de sublimação e de pacóvia intelectualização (p. 46); não é uma dada orientação sexual, naquilo que ela tem de estrutural, apesar de minoritária ante um conjunto de modelos de comportamento, que a sátira alveja, mas aquilo que nessa minoria é vivenciado enquanto mentira e máscara deliberadamente assumida (pp. 35, 57, 67, 68), aliás, esta apurada distinção que Paulo Franchetti faz entre aquilo que os tipos são em-si e o que neles é exibição gratuita e carnavalesca, é enfatizada mesmo pelo eu-poético: "(...) ó Deus do céu!/ Tende piedade, não deixeis (amém!),/ Que um dia, eu velho e tonto, vá também/ Choutando assim a carne mole ao léu!" (p. 41). O que ele teme, e a escrita poderá explorar como matéria-prima do riso, não é o ser-se velho, nem tão-pouco o ser-se velho e tonto, mas antes um estar que, tentando iludir tudo isso, acaba montando um cenário de estridências e metais falsos - e são essas excrescências comportamentais que a poesia de Paulo Franchetti capta simultaneamente com minúcia jocosa e uma depurada elegância de estilo.
Para além das figuras já referidas acima, outras aparecem igualmente visadas por todo um dardejar poético mesclado de lucidez e coragem: o "escritor muito prolixo e obtuso" (p. 27); as feias azedas e/ou mesquinhas (p. 33); a multidão urbana e estandardizada (p. 41); o "doutorzinho sonolento" e exibicionista (p. 43)... O pavoneio é mesmo um dos alvos preferidos desta sátira.
Não são apenas vários os visados por esta obra, são também diversas as fontes e os procedimentos de intertextualidade que Paulo Franchetti invoca, para, no seu refinado cadinho, conseguir uma obra singular e distanciada de todos aqueles de que demonstra conhecimento.
Inserido numa tradição cujo ponto de partida remonta à poesia greco-latina, não podemos ler este livro sem nos lembrarmos de alguns poemas de Catulo ("Que boa parelha!", "Que injustiça!" e muitos do ciclo "Gélio"); sem chamarmos a nós também Marcial (Livro II, 29, 36, 61; Livro IV, 43...) e sem recordarmos Ovídio ("Arte de amar", Livro II. 665- 745) - Marcial dá mesmo título a um poema de Escarnho ( pp. 48- 49), enquanto Ovídio, no final do excerto acima citado, pede louvores para o seu canto, canto esse referido igualmente por Paulo Franchetti (p. 67). Mas nem só à Antiguidade vai Franchetti buscar temas, personagens e aspectos da sua imagética - o diverso acaba desdobrando-se por outras épocas, movimentos literários e autores: o primeiro verso do soneto "Assim, ó bom glutão..." (p. 62) lembra-nos de imediato Camões, nomeadamente a terceira estância do Canto Primeiro dos Lusíadas (é interessante até fazermos a comparação entre o final da referida estrofe e o final do soneto). Muitas das queixas camonianas (veja-se o soneto "Quanta incerta esperança, quanto engano!", as oitavas sobre o desconcerto do mundo, algumas das canções, sobretudo a quarta, sobre " a instabilidade da Fortuna") aparecem em Escarnho radiografadas: e esse universo causador de lamentos surge agora cruamente, a preto e branco, na sua perversa bizarria, no seu ramerrão de pura matéria de riso. Mas é muito mais nítido o diálogo de Paulo Franchetti com outros poetas, por exemplo com a veemência de Gregório de Matos, que, não apenas virada contra a sociedade da Bahia, visa um social no seu todo ("Eu sou aquele, que passados anos/ Cantei na minha lira maldizente/ Torpezas do Brasil, vícios e enganos") e com duas das vertentes da poesia de Bocage, pois pegando num célebre soneto deste ("Meu ser evaporei na lida insana"), constrói-lhe a contra-argumentação com o seu "Elegia" (p. 23) que nos remete imediatamente para a poesia satírica do árcade e pré-romântico português. O jogo e a verrina são ainda mais refinados em relação à poesia de António Nobre: ao primeiro poema longo de "Só" (excluindo, obviamente, os dois poemas introdutórios) intitulado "António", contrapõe Paulo Franchetti o soneto decassilábico "Nobre" (p. 19), e a todo um universo agrário e piscatório, intocado pela Revolução Industrial, com as suas lanchas, as suas ermidas, os seus rebanhos, que o autor do "livro mais triste que há em Portugal" espraiou pelas suas páginas, o poeta brasileiro responde com um relacionamento de inconformidade ante a moral esperada, acentuando através de diminutivos (ovelhinha, quietinha...) todo o risível da situação. Saliente-se uma minúcia: António Nobre usa com frequência os diminutivos (sãozinho, anjinho, velhinha, etc.), mas não os usa quando se refere a ovelhas por exemplo em poemas com "Lusitânia no Bairro Latino" e "Purinha"... E são todos estes aspectos que realçam o vasto conhecimento que o autor de Escarnho tem da tradição poética luso-brasileira, bem como dos procedimentos necessários para o bom uso do humor em todo um processo de satirização coerente e inexorável.
O vector da multiplicidade para uma inabalável harmonia aplica-se também, nesta obra, quer ao estilo quer aos vários aspectos formais. O primeiro, marcado por alguns dos autores já falados (Gregório de Matos, Bocage, Nobre...) é-o também por um Olavo Bilac, que, na sua "Profissão de Fé", deixa bem claro: "Quero que a estrofe cristalina,/ Dobrada ao jeito/ Do ourives, saia da oficina/ sem um defeito." Paulo Franchetti é, por conseguinte, herdeiro desta inquietação com o rigor e a precisão... Apenas um exemplo das semelhanças entre ambos os autores ao nível do cuidado com a expressão e a palavra poética: "Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada" diz-nos Bilac no seu "Nel mezzo del camin"; "Pasmei, pasmaste, da mentira absconsa" avança Franchetti num processo eufónico do mesmo tipo numa das "oitavas a um seu amigo". É surpreendente o modo como o poeta contemporâneo tudo conhece, assimila e transmuta numa nova escrita: realidade incontaminada apesar da sua génese; recusa de seguidismos grosseiros para que um dizer singular se afirme - o seu. Dizer esse que - e voltamos ao nó deste texto!- engloba e transpõe: a gíria, o registo erudito, os arcaísmos e até esse crioulo com laivos de italianização (p. 37) usado nas escrita de Juó Bananère. É nesta mesma página que Paulo Franchetti - que escreve em oitavas, em sonetos, em quadras, em sonetos com continuidade poemática (p. 44 e p. 46), em sonetos com processo dialéctico de tese e antítese (p. 20 e p. 21) - se socorre de uma forma pouco usada de composição: "o soneto estrambótico", que aqui aparece com três tercetos após as duas quadras.
Podemos, por fim, dizer que este novo livro de Paulo Franchetti prima sobretudo pela forma como o poeta assume toda uma panóplia de informações e conhecimentos literários, para, estabalecendo entre eles um novo paradigma de interconexões plurisignificativas, dar lugar a um estilo singular e irrepreensível nessa finalidade que a si impõe - dissecar um social através de uma harmoniosa palavra, que é simultaneamente apontar certeiro e ousado riso.
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Victor Oliveira Mateus in "Letras com vida", Nº 1, 1º semestre de 2010, pp 242 - 244.
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