Nota - Os inéditos que tenho vindo a postar neste ciclo são provenientes de mails recebidos, de aquisições feitas junto de causas em que recentemente militei, de projectos que ainda aguardam concretização, etc. Os textos serão imediatamente retirados se os respectivos autores ( ou alguma editora) me disserem para o fazer. De qualquer modo continuo a pensar que não devo ficar (só eu!) com todo este material no fundo das minhas gavetas. O texto que se segue tem para mim um enorme valor simbólico, pois marca um momento em que a Rosa Lobato de Faria foi para comigo de uma grande solidariedade: várias vezes a importunei e sempre a autora, de modo gracioso e generoso, respondeu aos meus pedidos. Os gestos foram de tal modo abnegados que talvez a escritora nem sequer tenha ficado com uma cópia deste conto, razão acrescida para que o leiamos e nos saciemos...
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"Café"
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Ela falou que ele vinha e perturbava toda a casa. Vinha muitas vezes, quando o patrão não estava, assombrava os corredores e os quartos à procura dela, gelava o ar, acendia a escuridão.
Disseram-lhe que ele se matara de desgosto quando a levaram para a casa grande, para ser mucama. Ao princípio. Porque quando a senhora morreu de desamparo, o patrão pô-la no lugar da defunta e fez dela senhora. Com os pés que não cabiam nos sapatos e a cintura que não aceitava roupas finas. Só queria nudez e liberdade apesar de ser escrava e parecia-lhe que as senhoras ricas e brancas eram mais escravas do que ela, cheias de calor, apertadas em vestidos abotoados e justos, e depois, nas mãos, um abanico a que chamavam leque, que ela deixava cair, que se lhe atrapalhava nos dedos, nascera para escrava e havia de ser escrava até ao fim dos seus dias.
O fantasma vinha e voltava a vir, e até os pássaros se encolhiam no voo, os gatos fugiam e o macaquinho tapava os olhos para que o não vissem. O fantasma do homem que amava, a quem jurara "para sempre" e "haja o que houver". Ele tinha posto os olhos naquela moreninha linda lá no cafézal, um corpo de deusa, a carinha risonha, os olhos claros na cara preta por um erro de genética, e ali mesmo se apaixonara por ela, enquanto colhia os frutos que haviam de resultar numa bebida quente e perfumada que jamais vira nem provara nem ouvira falar. Escravo no corpo mas livre na alma, vais ser minha, e nem a ameaça do tronco o faria mudar de ideias.
Vinha cobrar os "para sempre" depois de morto e, por mais que pensassem que o filho era do patrão, ela jurou ao meu pai que era do fantasma, que a possuía como patrão nenhum, dono nenhum, senhor nenhum.
Sim, senhor. O meu pai era esse filho das sombras, eu sou neto de assombração.
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Rosa Lobato de Faria (Inédito, 23.06.08)
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