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"Depois, pelo contrário, teremos a liberdade, a segurança, impostos mais leves, a facilidade, o comércio. Todos estaremos melhor: só os padres perderão alguma coisa. O Senhor protege os pobres como eu, não a eles." Dom Fabriizio sorria (...)"Vai haver dias de tiroteio e de confusão, mas a Villa Salina será segura como uma fortaleza; Vossa Excelência é o nossos pai, e eu tenho aqui muitos amigos. Os piemonteses só entrarão de chapéu na mão para cumprimentar Vossas Excelências. E ainda por cima o tio e tutor de Dom Tancredi!" O príncipe sentiu-se humilhado: agora via-se degradado à categoria de protegido dos amigos de Russo; o seu único mérito, ao que parecia, era ser tio daquele ranhoso do Tancredi.(...) "Tudo será melhor, acredite, Excelência. Que se apresentem os homens hábeis e honestos. O resto será como antes." Esta gente, estes liberalzecos de aldeia só queriam arranjar maneira de se aproveitarem. Ponto final.(...)"Talvez sejas tu quem tem razão. Quem sabe?" Agora é que penetrara em todos os sentidos secretos: as palavras enigmáticas de Tancredi(...).Iriam acontecer muitas coisas, mas seria tudo uma comédia, uma ruidosa e romântica comédia com uma ou outra mancha de sangue no traje do bobo. Esta era a terra dos acomodamentos, não tinha a fúria francesa(...) Apeteceu-lhe dizê-lo a Russo, mas reteve-o a sua inata cortesia: "Entendi muito bem: vós não quereis destruiri-nos a nós, os vossos "pais"; só quereis ocupar o nosso lugar. Com doçura, com boas maneiras, se calhar metendo ao bolso uns milhares de ducados? Não é? O teu neto, caro Russo, acreditará sinceramente que é barão, e tu transformar-te-ás, sei lá, no descendente de um boiardo de Moscóvia.."(...) Quando voltou lá para cima, Dom Fabrizio encontrou Paolo, o primogénito, Duque de Querceta, que o esperava no gabinete em cujo divã vermelho ele costumava fazer a sesta. O jovem reunira toda a sua coragem e desejava falar-lhe. Baixo, franzino, cor de azeitona, parecia mais velho que ele. "Paizinho, queria perguntar-te como devemos comportar-nos com o Tancredi quando o virmos." O pai percebeu logo e começou a irritar-se." O que pretendes dizer? O que foi que mudou?" "Ora, paizinho, decerto não podes aprovar: foi juntar-se àqueles bandidos que puseram em tumulto a Sicília; isto é coisa que não se faz."(...) Fabrizio indignou-se tanto, que nem deixou sentar o filho: "Mais vale fazer disparates do que passar o dia inteiro a olhar para a caca dos cavalos! O Tancredi é-me mais querido que antes. E depois não são disparates."(...) Abriu o jornal. "Consumou-se um acto de pirataria flagrante a 11 de Maio com o desembarque de gente armada na doca de Marsala. Posteriores relatos esclareceram que o bando desembarcado contava cerca de oitocentos homens, e era comandado por Garibaldi(...) Meteu o jornal numa gaveta. Eram quase horas do rosário, mas o salão ainda estava vazio. Sentou-se num divã e enquanto esperava reparou que o Vulcano do tecto se parecia um pouco com as litografias de Garibaldi que vira em Turim. Sorriu. "Um cornudo." A família ia-se reunindo. A seda das saias não parava de roçagar.(...) Ajoelhou-se: "Salve, Regina, Mater misericordiae..."
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Tancredi tinha demasiado tacto para preceder o Príncipe na chegada à terra; pôs o seu cavalo a passo e prosseguiu, reservadíssimo. ao lado da primeira carruagem(...) primeiro extravagante mas terno cumprimento que desde há uns anos Donnafugata apresentava ao seu Príncipe (...) "Graças a Deus, parece-me que está tudo como de costume", pensou o Príncipe descendo da carruagem.(...) Os sinos continuavam a repicar, e nas paredes das casas as inscrições de "Viva Garibaldi" "Viva o Rei Vittorio" e "Morte ó reu Bourbon", que um pincel inexperiente traçara dois meses antes, desbotavam-se e pareciam querer meter-se pela parede dentro. Os morteiros estralejavam enquanto se subia a escadaria (...)
O Príncipe fizera sempre questão de dar um carácter solene à primeira refeição em Donnafugata: os filhos abaixo dos quinze anos estavam excluídos da mesa (...) Dom Calogero avançava de mão estendida e enluvada para a Princesa: "A minha filha pede desculpa: ainda não estava arranjada. Vossa Excelência sabe como são as fêmeas nestas ocasiões"(...)"Mas estará aqui num instante; da nossa casa até cá são dois passos, como sabeis."
O instante durou cinco minutos; depois a porta abriu-se e entrou Angelica. A primeira impressão foi de deslumbrada surpresa. Os Salina ficaram de respiração suspensa; Tancredi sentiu inclusivamente latejarem-lhe as veias das têmporas.
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"Giuseppe Tomasi di Lampedusa In "O Leopardo", Editorial Teorema, Lisboa,
2007, pp 30 - 66 (Tradução de José Colaço Barreiros).
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