05/01/10




Lembrei-me de ti, logo de manhã, frente aos semáforos.
Via-te na contenção das palavras; vestígios da culpa
que te ofertavas, enquanto outros eram - desacatos,
folguedo... Via-te a crescer pra dentro como a mais
desamparada corola abrindo-se ao contrário ou o fulgor
de um astro, que, desgarrado, ansiava uma qualquer
órbita a dar-lhe sentido. Desenhei-te na montra do cubículo

onde tomei o café. Desenhei-te e eras angústia ao crepúsculo:
incapaz de decisão num país onde o rei preferia assaltos,
rixas, as pegas para esconder suas ejaculações precoces
e a quem António Cicati montava como a potro manco
e desvairado. Lembrei-me de ti assustado, com a cabeça
a prémio, os esbirros metidos na própria casa - infante
atravessado no caminho daqueles pra quem o poder não é

mais do que pesca de arrasto e a paz não passa de noção
vaga a enfeitar a terra, os corações, os livros pretensamente
morais e edificantes. Lembrei-me de ti, logo de manhã,
quando as rotinas se agigantaram e o meu regresso ao cismar
das palavras era coisa distinta dos golpes (extemporâneos)
com que outros tantas vezes as vestem. Adivinhei-te como
reforço de mim: aprendizagem em que me lanço, me perco

e recupero - seta a visar um fim que creio início, pois gémeos
nem sempre são de tempo ou de parto, mas de elos
que aproximam as mais inférteis distâncias; refinadas tramas
que unem, sem sabermos como nem porquê. Frente ao rio,
nesta manhã que é já outono, observando os cacilheiros
no seu vaivém afadigado, imaginei-te naquele momento
em que ela, vinda de França com instruções, pretendia

estancar o festim e suas mazelas. Fizeste-lhe uma vénia,
cujo acentuar ela impediu. A sua mão no teu braço. E o olhar.
Vocês não falavam a língua um do outro. Falavam com o olhar,
e era tudo... com ele se escapavam, às vezes, para Salvaterra,
onde se encontravam, onde se entregavam. Dizem os historiadores
que não há provas, mas eu, que tudo sei do amor que confunde
e não deixa rasto, tenho a certeza que vocês se beijavam,

se possuíam, se amavam num qualquer casebre no meio
da charneca, tal como eu, hoje aqui à espera, ou melhor,
como todos: particulares estórias a expressar coisa que sempre
foi - esperas, ambições, amores, traições... Tu, Pedro, o segundo
que serias de teu nome; ela, a de Sabóia, lúcido peão de si própria;
e eu, inseguro, olhando ansiosamente o relógio. Não resta qualquer
dúvida: aqui todas as faces são o mesmo prisma! E todos os homens

são igualmente o mesmo, sem refúgio nem diferença. Assim
o rio em mansa correnteza - por mais que nas suas águas
me banhasse pra sempre ficaria seu ser de rio. Do que Estrabão
escreveu acerca dele ao paredão onde espero, uns breves séculos.
Pois nada é o tempo e seus rodeios - nada, ante a imensidão
que nos circunda!... As gaivotas, tresloucadas, encenam
a sua habitual coreografia, esgravatam o jardim, o molhe -

procuram (elas também) mas de outro modo. Um cargueiro,
no centro da paisagem, ignora ostensivamente as outras
embarcações, que, ufanas, cumprem a sua glória de unir margens.
Frente ao quiosque há quem leia títulos, compre jornais,
ou simplesmente pare por parar, mas logo retomam todos
o seu rumo, porque nisto de esperas - e ao contrário
do muito dito - também se atende caminhando. Só o conhecido

é já esperado - acaso estaria eu, aqui, num embarcadouro
fluvial, se não soubesse já essa presença que a todos acena,
que ressuma das pedras, das árvores, dos pássaros e de tudo
quanto à vida vem em sua misteriosa transparência? O cais
é também este enormíssimo hall onde se cruzam cafés,
balcões de circunstância, entradas de metro e uma manga
asmática a lançar gente, por sacões, como resíduos pestilentos

e inúteis. Ah, o cais é sobretudo os meus olhos virados para
a foz!, fantasiando a poderosa armada francesa a entrar a barra,
empurrando-te para o golpe de estado, estado de golpe em
que te encontravas - metade desejo, metade medo. Golpe
igual ao meu, esperando o que do sul há muito tarda... comigo
a imaginá-los: Pedro com os cabelos revoltos, a mochila
a descair, as palavras umas atrás das outras; Francisca atenta

na sua dúplice paixão, as sílabas mitigadas, um agradecido
gesto ante a lealdade que continuamente vou tecendo, para lá
de tanta intermitência. Sonho a prontidão de um sonho imenso,
um território onde o verde irrompa e se dissolva numa qualquer
extensão de mim, indissolúvel luz a fincar presença na pavorosa
dissolução dos mapas. E reconstruo - mescla de acenos
e lembranças - a ousadia de que não desisto; coisa vislumbrada

(nem arma nem rasgo de vulcão) que um sopro ainda traz
e a mim acolhe em noites de vendaval e atormentada solidão.
Há uma hera, no lado de fora, a abraçar a estátua, coisa
de ninguém ver na azoada azáfama que têm como vida;
vida a zarpar morte em sua felicidade imitada tão a custo
obtida. O bêbedo da padiola quer também entrar no átrio
do cais. Um segurança não deixa, que segurança não é

pedaços de cartão, vómitos letais... Mas o pregão
da florista já entra sem pedir licença, e, licenciosamente,
mistura-se comigo, com a minha espera, com o bêbedo;
mistura-se com Pedro II a enviar o irmão para Angra,
com a sirene do barco recém-chegado, com ela a acenar-me,
feliz e ele também feliz, mas mudo - grande é o abraço,
forte o reencontro daquilo que permanece - em tudo.

Mateus, Victor Oliveira. Gente Dois Reinos. Fafe: Editora Labirinto, 2013, pp 35 - 38.
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