17/01/10

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- Que esquisito, esqueci-me do sonho, agora lembrei-me, só que não era um sonho - disse Harvey, embaraçado. Sentiu uma curiosa força eléctrica que de alguma forma entrava no seu corpo e dele se apoderava. "Claro que estou bêbado, até me sinto um bocado tonto", pensou. Sefton olhou para os livros, depois para a janela onde o sol ainda não brilhava, em seguida de novo para Harvey. A mão de Sefton, em que se apoiava, estava no chão ao lado dele. Ele pôs a mão sobre a dela. A mão dela mexeu-se como um animalzinho cativo, agarrou a dele por um momento, depois retirou-se. Olharam outra vez um para o outro. Harvey estendeu o braço por cima da superfície resistente da coberta da cama e tocou com a mão os ombros de Sefton, sentindo através da camisa de algodão o calor das suas costas, os seus ossos. Continuaram a fitar-se mutuamente, com um olhar intenso e inquiridor que se dissolvia numa espécie de deslumbramento cego. Harvey deixou os joelhos deslizarem para o lado e ergueu-se um pouco para a frente apoiado no outro braço. Inclinou-se e os seus lábios tocaram muito levemente a face de Sefton. Viu-a fechar os olhos. Ele fechou os olhos. Os lábios de ambos, movendo-se rapidamente, mas com uma precisão tranquila, como pássaros na noite, encontraram-se por um segundo.
Afastaram-se e entreolharam-se com espanto e perplexidade, com medo, quase com terror. Estavam a tremer, arrepiados. Era como se um enorme golpe os tivesse paralisado.(...) Harvey disse, por fim, quase segredando:
- Isto pode realmente acontecer desta maneira? É evidente que sim.
Sefton, sem olhar para ele, disse com uma voz angustiada, quase impertinente:
- Mas que aconteceu? Não faço ideia.(...)
-Sefton, não estejas zangada comigo. Eu amo-te.
Passado um momento, Sefton disse:
- Sim. Aconteceu alguma coisa. Mas acho que é uma loucura (...) Harvey, não. Não sabemos quem somos, nunca me senti tão estranha... tornámo-nos monstros, de repente ficámos uns... monstros.
- Não estejas com medo, minha querida Sefton.
-Não estou... com medo... creio eu... só admirada, espantada.
-Somos monstros bonitos, monstros bons (...)
- Pensa como são estranhas as tuas palavras. Ouve, Harvey, ouve, isto, seja o que for, aconteceu connosco por acaso, aconteceu aos dois...
- Graças a Deus que aconteceu aos dois (...).
- Escuta, Harvey, sou mais velha que tu, sou milhares e milhares de anos mais velha que tu (...)
- Queres tempo para te recompores e me dizeres para ir para o inferno.
- Não. Acredito que isto é tudo real. Faz o que te peço. E, por favor, agora vai-te embora (...)
Harvey acenou com a mão e saiu. A porta fechou-se. Caminhou pela rua a sorrir como um homem louco.
Sefton deitou-se de costas sobre o tapete (...) Pensou:" Agora estou num vácuo, em nenhum lado, entre o ser e o não-ser, onde se pode escolher não ser. Estou dissolvida por medo e violência numa paz intemporal. Não esperava nada esta perturbação, esta súbita e terrível presença do deus. Talvez o melhor, afinal de contas, fosse não ter nascido. Como deve estar perto do nada a alma humana, para ser assim tão facilmente abalada."
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Iris Murdoch In "O Cavaleiro Verde", Publicações Europa-América,
Mem Martins, 1993, pp 371 - 375 (Tradução de Luís Serrão).
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