05/10/10

"o caramanchão onde em muitas tardes/ me sentava com um livro na mão/ morrendo de desvairada alegria; "

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" A Criação do Mundo"

Uma coisa insone, talvez coisa nenhuma,
se agita intranquila
num círculo que invento
como poça no terreiro.
Coloco dentro uma rua
e nela uma casa
com vidraças na varanda.
Trago um endereço na mão
e paro defronte à porta,
mas não posso abri-la.
Não decifro a chave
que é um deserto de família.
Fico olhando o pensamento
para ver se ao menos uma janela
se rompe para a entrada do nada.
Gestos de dor se fecham
e tudo desaparece
em murmúrios e momentos do tempo.
Só me lembro do que é dormido.
Com movimentos de dança
o rio lambe sua cauda de linfa
e incandesce os poetas,
os que cantaram sua ponte
- essa enorme boca -
e os que acarinharam suas costas
de metal polido.
Não há ninguém sentado na margem
em que habitava desarmada
da convulsão de meus deuses.
Como num impossível sonho e lúcido sentido
reconstruo as pedras do jardim,
altas, gordas e redondas,
que abriam um buraco nas begônias;
as lesmas que lambiam
a terra com sua baba;
a crista vermelha
pulsando no andar do galo;
o corpo de seda da lagartixa
em sua imobilidade de gesso;
o caramanchão onde em muitas tardes
me sentava com um livro na mão
morrendo de desvairada alegria;
os ecos de vozes, lágrimas, vultos na escada.
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Desenterro as raízes do medo,
tortas e doendo de fome.
Nada mais germina nesta horta,
este chão transfigurado
em fragmentos de musgo e acalanto.
O pranto é um lenço de linho
cobrindo o rosto como uma capa.
Espero que me dêem um delírio,
uma queimadura, um coração estrelado,
tudo muito colado ao meu rosto,
para que acordem o meu sonho
e retornem, com nomes na memória,
a essa loucura em que, mutilada, me apoio.
.
Quem me vê andando entre os muros
e se aproxima abrindo
a parede de chumbo da infância?
Que beijo ganho por ser tão menina?
Ando devagar, afundando as sombras
nos meus passos. Desço a rua do Pomba.
Abro os olhos da filha
e vejo a criação do mundo.
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Lina Tâmega Peixoto in "50 Poemas Escolhidos pelo Autor", Edições Galo Branco,
Rio de Janeiro, 2008, pp 61 - 63.
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