09/02/11

"E o meu riso te veste de aparências..."


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"II"
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Súbito, a Morte sofreou as rédeas
Do cavalo-fantasma em que montava,
Estacando no meio do planalto.
E a sua sombra negra se tornou
Imóvel, na brancura do caminho.
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E, vendo diante dela um corpo humano,
Logo escondeu nas dobras do seu manto
O rosto de caveira, onde o luar
Batia como sobre um frio mármore.
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E então aquele estranho viandante
Solta estridente e doída gargalhada.
E o eco, estremunhado, repetiu-a;
E foi, de vale em vale, desfazer-se,
Cinza de som, na cinza da distância.
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E ela, irada, agitando a reluzente
Fouce cruel, gritou: "- Quem és? Quem és?
Mas quem se atreve assim a rir da Morte?"
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"- Eu: este louco espírito que ri...
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"Gosto às vezes de rir nas horas negras...
E de sentir meu riso humedecido
Das lágrimas das cousas, que murmuram
Escuros, demoníacos segredos...
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"Doido que sou, meu riso é de alegria...
E sobressalta a noite, que revela
Aparições, figuras, perpassando
Em turbilhão nos ares... burburinhos
De invisíveis espíritos sem nome...
Os ventos que o meu rir desencandeia!
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"Foi à luz do meu riso lampejante
Que teu funéreo vulto conquistou
Este rumor e sombra que é Presença..."
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E a trágica Amazona: "- Pois é certo
Que o riso doido grava no silêncio
Imagens que têm alma e vida própria?"
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"É certo que, ao beijar-me, a tua sombra
Logo se fez em riso nos meus lábios...
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"- És a fonte sinistra do meu riso...
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"E o meu riso te veste de aparências..."
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"- São escuras palavras... Não entendo.
Eu quero conhecer-te. Quem és tu?"
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"- Não sei quem sou, não sei... Mas que me importa?
Meu gosto é rir, de noite, no silêncio..."
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E outra vez o nocturno caminhante
Encheu de riso o espaço e o luar extático:
A débil luz anémica, embebendo-se
Em sol de primavera e de loucura.
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Teixeira de Pascoaes, Início do Poema II de "O Doido e a Morte", in "Obras Completas - IV Volume", Livraria Bertrand, Amadora, 1974, pp 258 - 259 (Introdução e aparato crítico do Prof. Dr. Jacinto do Prado Coelho).
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