02/02/11

"Ela via as coisas onde elas estavam, nitidamente a forma mais/ difícil de ver o que quer que seja."

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"Sarah Kirsch"

No dia em que conheci Sarah Kirsch ela trazia os cabelos lisos
pelos ombros e sorria como o sol ténue de Leipzig naquela manhã.
Teria sido um dia como os outros não fosse a sua voz sibilina
escolher-me ao acaso entre os demais e entregar-me com aqueles
dedos que parecem asas de esferográfica um pequeno pedaço de
papel com um poema. No dia em que conheci Sarah Kirsch descobri
que nem todas as cidades são iguais e que o vento sopra em diferentes
direcções. Convidou-me a sentar na sua mesa e logo começou a falar
de como as pessoas seguem os seus caminhos sem que percebam
que os caminhos foram previamente desenhados pelo chão.
Ela via as coisas onde elas estavam, nitidamente a forma mais
difícil de ver o que quer que seja.

Já no dia em que conheci Sarah Kirsch o homem novo era
uma ilusão e tínhamos que esperar enrolados em cobertores
o final do banho do vizinho de baixo para que a água tivesse
suficiente pressão para aquecer. E perante a água fria as mãos
tremiam como quando se preparam para escrever um poema
ou para acariciar os cabelos lisos pelos ombros em manhãs de sol
ténue na cidade de Leipzig. Já no dia em que conheci Sarah Kirsch
a vida humana valia muito pouco apenas era mais difícil encontrar
nas páginas de um jornal as notícias que agora gerem o nosso medo.
Ter medo era então um acontecimento escasso - porque mesmo
não acreditando ainda havia o sol ainda existiam as imensas
avenidas de Leipzig ainda existia a juventude e os poemas de
Sarah Kirsch

Luís Filipe Cristóvão in " O prisma das muitas cores - Poesia de Amor Portuguesa e Brasileira" (Organização: Victor Oliveira Mateus, Prefácio: António Carlos Cortez ),
Editora Labirinto, Fafe, 2010, p 112.
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