13/02/11

" morre duas vezes quem viveu da sua imagem."

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Poema 2 do Ciclo "Vozes Apanhadas do Chão na Igreja de San Miniato al Monte"

A minha vida divide-se entre luz e sombra.
Dos vinte aos vinte e nove fui aplaudido
por holofotes em cio, todas as notícias
me queriam conhecer, e em meus braços
decidia-se a beleza ou fealdade das mulheres.
Quinze filmes de sucesso e depois, o desastre:
quatro fracassos consecutivos. O meu rosto,
disseram, passara de moda, ultrapassado
pelas máscares de gás que atravessaram,
com a guerra, meia Europa, quando o público
desatou a imitar o cinismo dos intelectuais
e a achar ridículo o sensível romantismo
dos meus gestos. Assim se fundiu a minha
auréola, o meu prestígio. Remetido para
as trevas, nunca mais fui perseguido por
fotógrafos, e tudo em meu redor se esvaziou
como um balão abandonado pelo fogo.
No meu funeral, vinte anos depois, nenhuma
apaixonada deu a cara, nenhuma malcasada.
Só então compreendi quão morto estava.
Reflecti, vós que passais, na minha história:
morre duas vezes quem viveu da sua imagem.

José Miguel Silva in " Erros Individuais ", Relógio D'Água Editores, Lisboa, 2010, p 52.
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