24/02/11

"O milagre não é uma suspensão das leis da natureza, mas o seu cumprimento."

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Os grandes supermercados e shoppings tornaram-se os nossos templos, com a liturgia do consumo e do desperdício. E afastam, por estratégias de construção e segurança, a mão do pedinte, o estorvo do outro. E eu faço parte, mesmo a contrapelo, desse coro concentrado no umbigo e na ambição. Para nós caberia a pergunta do Criador feita a Adão, com a perda do paraíso: "onde estás?" Onde estamos que não vemos ou atrofiamos os olhos e a epiderme? Paul Ricoeur observa muito bem quando afirma que a essa pergunta endereçada a Adão, "apenas Abraão pode responder: Eis-me aqui." O mesmo autor, se bem me lembro, disse que o amor protege a justiça do cálculo interessado do Do ut des, dar para que me seja devolvido.
Nesta prontidão somos poucos. E quando respondemos, guardamos uma reserva de tudo o que temos e somos. "Não há maior milagre do que repartir o pão." Todo repartir do pão é consagração, efetua a presença do senhor da messe. Nesse claro instante o homem reconhece o seu irmão, cidadão de Jerusalém, filho de Abraão, abrindo-lhe as portas do coração e da morada. "Um só é o testamento." Não há ruptura entre os textos. O novo é tão antigo como o primeiro e o antigo sempre será novíssimo. Todos os livros em torno ao sagrado, na busca da beleza e verdade, na conciliação entre vida e caminho, se agregam a esse testamento. Eles também falam em milagres, sinais a serem interpretados. O milagre não é uma suspensão das leis da natureza, mas o seu cumprimento. A verdade não nega a lei, mas dá-lhe o endereço. O devido cumprimento da lei instaura a justiça: dar a cada um o que é seu. Ir além, o amor ao próximo realiza. "Um só é o preceito: ama o próximo como a ti mesmo." Então é preciso um amor a si mesmo desprovido de egoísmo, de falsos ídolos, de barganhas e subterfúgios. Um amor que não nos tolha o crescimento como pessoa de valores. Se te vendes por nada, assim amarás. (...) O amor, segundo Platão, faz com que tudo viva em conexão..
" O homem não foi feito para o sábado, mas o sábado para o homem". Kafka, o profeta tardio, descreveu tão bem os labirintos irracionais da lógica da burocracia! Tanto no Castelo, no esforço infrutífero de chegar ao agrimensor, como no Processo, ao desabafo do personagem, como corolário do livro: " a lógica não pode impedir um homem que quer viver." Queremos um Deus adequado à razão ou acomodado a nossas vantagens. Esvaziamos as palavras sagradas a nosso bel-prazer. Aquele que devemos amar no próximo desarticula todos os esquemas.
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Maria Carpi in "Abraão e a encarnação do verbo", Editora Age, Porto Alegre,
2009, pp 25 - 26.
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