24/12/12

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                      "  O  Joelho  de  Colbert  "


     Não devia ter combinado aqui. Neste espaço, onde as dimensões do tempo se misturam e a beleza irrompe como corola abruptamente fendida pelos socalcos de uma cidade que desce até ao rio. Não, não devia ter combinado aqui, neste local tão firmado nos mais ousados afetos, sempre à mistura com uma memória inapagável, voraz, e que em tortura me corrói os dias. Talvez pudesse ter optado por um outro lugar. Quem sabe, por uma das esplanadas lá de baixo, sempre repletas de veraneantes, onde o cheiro do peixe se nos entranha no corpo, ou por uma das vielas dos bairros antigos de pescadores, muitos vivendo ainda nas mais precárias condições.
     Mas aqui, neste Forte de S. Filipe, consigo uma lucidez bem difícil de encontrar no turbilhão da cidade. A proximidade dos objetos, a falta de perspetiva, turva-nos sempre o olhar e a correta avaliação do que nos cerca. Hoje, deste terraço, a foz do Sado aparece-me com o encanto que teve naquele primeiro dia. Até os golfinhos, fingindo cumprir um qualquer aprazado ritual, saltam divididos entre o azul das águas e a luminescência dos reflexos por elas devolvidos. Dois overcrafts fazem a ponte com a península de Tróia, em frente. Por baixo do sítio onde me encontro, alguns caiaques entregam-se ao fascínio de juvenis acrobacias. Duas traineiras entram na barra acompanhadas pelo grasnar ávido das gaivotas. Ouve-se uma sirene.
     Acabo sempre por regressar a este local. Trago um livro, uma revista, ou o portátil, e por aqui me deixo ficar, trabalhando, reflectindo, ou, tão-só como hoje, deixando-me aconchegar por tudo o que me envolve, exactamente como no primeiro dia, quando observava a enseada da outra margem, vendo uns minúsculos pontos negros à beira da água - talvez trabalhadores na apanha de bivalves ou turistas dirigindo-se para as antigas ruínas romanas. Neste abandono de mim, sou surpreendido por uma voz infantil que me pergunta o que estou a fazer. Olhei para o lado e vi um miúdo com cerca de três anos, bermudas verdes às ramagens, boné com pala virada para trás. O que estou aqui a fazer? Boa pergunta. Não há como as crianças para, na sua simplicidade, nos alertarem para a nossa condição de viventes tantas vezes à deriva! O meu silêncio forçou-o a insistir. A voz de um homem repreeendeu-o, perguntando-me, depois, se ele me estava a incomodar. Não lhe respondi. Levantei  a mão, encostando-a ao rosto do miúdo, que, acalmado, semicerrou os olhos. O homem, surpreendido, disse não ser habitual o filho serenar com tanta facilidade. Uma música roufenha vinha do interior da pousada. Ouviu-se de novo o som da sirene. Uma das traineiras começou obliquando na direção do porto, onde outrora laboraram as fábricas de conserva. O homem sentou-se à minha mesa e apresentou-se:
- Fernando Colbert. - Estendeu-me a mão. Sorri.
- Como o Ministro das Finanças do Rei-Sol? - Perguntei. Ao que ele respondeu não ser nem rei, nem sol, nem nada. E começou confiadamente a desfiar as suas recentes vicissitudes: o divórcio, o poder paternal partilhado, a solidão...
     O empregado trouxe o café e, num gesto inesperado, o miúdo tocou-lhe no braço fazendo derramar o líquido pela mesa. Todas as minhas folhas A4 completamente perdidas e uma gota a cair exactamente no joelho de Colbert, que, levantando-se de um jacto, conseguiu evitar desastre maior.
     A este primeiro dia outros se seguiram: a troca de experiências, a visão do mundo, os projetos, ora expostos com fulgor, ora desvelados com alguma suspeita.
     A aproximação entre os seres surge umas vezes de aspetos convergentes, mas outras por tácitas cumplicidades, que no quotidiano se vão inscrevendo aos poucos e sem planos preestabelecidos.
     Disso dá testemunho este novo encontro:
- Lembra-se da nódoa no joelho? - Perguntei com ironia. Colbert olhou-me significativamente e sorriu.
- Em mim não há lugar para a nódoa. - Respondeu.
     A comunhão selou-se.
     Vendo bem, fez sentido ter combinado aqui. Local do primeiro dia. E o rio cintilou, dotado de alma, como se nessa transfiguração quisesse revelar tudo aquilo que os homens insistiam em ocultar.
 
  Mateus, Victor Oliveira. O Joelho de Colbert In " Um Rio de Contos: Antologia Luso-Brasileira ". Dafundo: Editorial Tágide, 2009, pp 236 - 237 ( Organização de Celina Veiga de Oliveira e de Victor Oliveira Mateus).
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