25/12/12

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                                 “ Nem sempre a cidade é triste “

 

 Nem sempre a cidade nos surge na sua multiplicidade de formas. Dias há em que parece apostada em oferecer-nos a sua face mais feia, a sua face mais horrivelmente cruel. Olhem, nem vos sei explicar! A única coisa que consigo é dizer-vos que, naquela manhã, não havia ponta a que me pudesse agarrar. Desci a rua de roldão e, mal cheguei ao Largo do Chiado, apenas queria uma mesa vaga na esplanada. O regateio com o alfarrabista deixara-me esgotada. Raio do homem! Anda uma pessoa dez anos à procura de um livro raro e depois de o encontrar ainda tem de travar uma batalha campal… Desculpa, interrompeu-me o Gonçalo, o homem teve razão, ele até te ofereceu o livro! Ah, se visses a cara de sonso dele, no final: ó professora, nós temos estado a discutir o preço da obra, não a venda, à senhora não o vendo, ofereço-o! Gonçalo ria. Agarrou-me pelos ombros: tenho uma mãe que detesta perder torneios. Larga-me! Tomás olhava-nos com aquele seu olhar liquefeito, olhar de cão abandonado, de quem traz em si todos os rasgões do mundo…

( Hum, já me esquecia de falar no Tomás! Veio aqui para casa quando o Gonçalo andou com a irmã, depois tem se deixado ficar: paga as despesas como um hóspede e partilha das vidas como um íntimo…)

Depois, ainda afogueada, sentei-me a ver a cidade a desdobrar o seu espaço, as suas personagens. Ironia cínica, rosnou Gonçalo. Não sei o que era, mas dava-me prazer. Primeiro foi um casal jovem: mochilas enodoadas, alpercatas cambadas, cabelos desgrenhados, enfim, uma tentativa de imitação das classes baixas, mas logo traída pelo olhar altaneiro, pelos queixos levantados. Bem, a minha senhora mãe hoje está cheia de azedume, disse o Gonçalo, vou-me deitar.

(Tomás não parava de me olhar. Não que o assunto parecesse interessar-lhe, todavia, esfíngico, tentava captar todos os modos do dizer.)

   Espera. Falta ainda o episódio do bardo. Do bardo?! Sim, é que no murete do metro havia um friso de tal modo diversificado… fixei-me num rapaz que durante mais de meia hora dedilhava uma viola e mirava um caderno sebento, pois ali esteve ele, aquele tempo todo, numa infindável lengalenga e sem virar a página. Era um poema curto mas profundo, voltou Gonçalo a sentar-se. Olhem, o que é um facto é que o rapaz sabia um ror de línguas e veio depois percorrer a esplanada, de mão estendida. A mim pediu-me em inglês, não lhe respondi, depois insistiu em italiano, como eu continuasse a não lhe responder, resolveu ficar especado na minha frente, a medir forças com o olhar, então achei por bem dizer-lhe em latim que não o entendia. Gonçalo engasgou-se com a cerveja: não é possível, tiveste coragem de te pores a falar em latim com ele?! O rosto de Tomás iluminou-se, os seus olhos eram agora dois sóis a brilhar por detrás das lentes arredondadas, a sua boca parecia querer esboçar dois traços, que, a medo, avançavam a tactear esse silêncio que tão bem o caracterizava. Não sejas precipitado, recomecei eu, ele até acabou por se sentar à minha mesa e… Gonçalo voltou a levantar-se: eis o clímax; a minha mãe e o cavaleiro andante!, agora é que me vou mesmo deitar. És um parvo, admoestei-o eu, para vocês homens estas coisas acabam sempre da mesma maneira, são mesmo primários, ainda pensei que fosses um bocado diferente, mas afinal: gabarolices e ruminações do não feito é o vosso lema, além disso, o rapaz tinha metade da minha idade.

( Hoje sei – porque ele me viria a dizer – que foi esta a passagem que fez Tomás decidir-se pela sua partida no dia seguinte.)

   E depois?! Depois nada, estás a imaginar-me ao lado de alguém com metade da minha idade? Vocês analisam sempre tudo do lado do homem, dando uma imagem repulsiva da mulher mais velha: a flacidez, a menor resistência ao esforço, etc., mas alguma vez nos perguntaram algo sobre o assunto? Se nos interessava tocar uma pele cheirando a talco e cueiros? És horrível!, resmungou Gonçalo. Horrível não, estas coisas têm sempre duas versões: se vocês achincalham as estrias por que não haveremos nós de fugir do acne? Abandonaram os dois a sala, precipitadamente. Estava eu ajeitando as latas vazias da cerveja, os cinzeiros sujos, quando Gonçalo regressou: foste de uma enorme crueldade. Eu?! Sim tu! Sempre tão centrada nos livros e afinal não vês o que está debaixo do teu nariz, por que pensas que o Tomás anda aqui às voltas em casa? Agarrei-me a uma das estantes, siderada. O quê, não te achas uma mulher interessante que possa atrair alguém também especial como o Tomás?! Eu não sabia o que pensar. Tudo se abatera sobre mim de um jacto. Acho bem que te reabilites, rematou Gonçalo, furioso, ele está a arranjar as coisas para se ir embora amanhã. Tantas teorias e afinal… Por favor, peço-te, deixa-me sozinha!

   Uma hora depois bati-lhe à porta do quarto. A luz estava ainda acesa, passava das duas da manhã: mas… está a arrumar as malas?, avancei eu, falsamente ingénua, aconteceu alguma coisa? Tomás, hirto, com um pólo na mão: acho que devo ir, respondeu com voz sumida, quase um sussurro. Mas não pode ir agora, Tomás! Não posso?! Não… eu vinha precisamente convidá-lo para vir uma semana para a casa de Aveiro; o Gonçalo vai começar com as frequências e nós íamos para lá. Silêncio. Tomás a compreender o que ambos já tínhamos compreendido. Acha que devo ir?, perguntou triste, titubeante. Tem de vir! E agarrei-lhe o braço. Diga que sim, insisti. E os seus olhos foram de novo dois sóis por detrás das lentes, as suas palavras – sempre tão comedidas – foram ainda mais serenas: partimos a que horas? E sorrimos, cúmplices.
 
 Mateus, Victor Oliveira. Nem sempre a cidade é triste In "Letras com vida: Literatura, Cultura e Arte" Nº 4, 2º semestre 2011, Centro de Litªs. e Cultªs. Lusófonas e Europeias da Fac. de Letras da Univ. de Lisboa, pp 141 - 142.
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