“ Nem sempre a cidade é triste “
Nem sempre a cidade nos surge na sua
multiplicidade de formas. Dias há em que parece apostada em oferecer-nos a sua
face mais feia, a sua face mais horrivelmente cruel. Olhem, nem vos sei
explicar! A única coisa que consigo é dizer-vos que, naquela manhã, não havia
ponta a que me pudesse agarrar. Desci a rua de roldão e, mal cheguei ao Largo
do Chiado, apenas queria uma mesa vaga na esplanada. O regateio com o
alfarrabista deixara-me esgotada. Raio do homem! Anda uma pessoa dez anos à
procura de um livro raro e depois de o encontrar ainda tem de travar uma
batalha campal… Desculpa, interrompeu-me o Gonçalo, o homem teve razão, ele até
te ofereceu o livro! Ah, se visses a cara de sonso dele, no final: ó
professora, nós temos estado a discutir o preço da obra, não a venda, à senhora
não o vendo, ofereço-o! Gonçalo ria. Agarrou-me pelos ombros: tenho uma mãe que
detesta perder torneios. Larga-me! Tomás olhava-nos com aquele seu olhar
liquefeito, olhar de cão abandonado, de quem traz em si todos os rasgões do
mundo…
( Hum, já me esquecia de falar no Tomás! Veio aqui para casa quando o
Gonçalo andou com a irmã, depois tem se deixado ficar: paga as despesas como um
hóspede e partilha das vidas como um íntimo…)
Depois, ainda afogueada, sentei-me a
ver a cidade a desdobrar o seu espaço, as suas personagens. Ironia cínica,
rosnou Gonçalo. Não sei o que era, mas dava-me prazer. Primeiro foi um casal
jovem: mochilas enodoadas, alpercatas cambadas, cabelos desgrenhados, enfim,
uma tentativa de imitação das classes baixas, mas logo traída pelo olhar altaneiro,
pelos queixos levantados. Bem, a minha senhora mãe hoje está cheia de azedume,
disse o Gonçalo, vou-me deitar.
(Tomás não parava de me olhar. Não que o assunto parecesse
interessar-lhe, todavia, esfíngico, tentava captar todos os modos do dizer.)
Espera. Falta ainda o episódio do bardo. Do bardo?! Sim, é que no murete
do metro havia um friso de tal modo diversificado… fixei-me num rapaz que
durante mais de meia hora dedilhava uma viola e mirava um caderno sebento, pois
ali esteve ele, aquele tempo todo, numa infindável lengalenga e sem virar a
página. Era um poema curto mas profundo, voltou Gonçalo a sentar-se. Olhem, o
que é um facto é que o rapaz sabia um ror de línguas e veio depois percorrer a
esplanada, de mão estendida. A mim pediu-me em inglês, não lhe respondi, depois
insistiu em italiano, como eu continuasse a não lhe responder, resolveu ficar
especado na minha frente, a medir forças com o olhar, então achei por bem
dizer-lhe em latim que não o entendia. Gonçalo engasgou-se com a cerveja: não é
possível, tiveste coragem de te pores a falar em latim com ele?! O rosto de
Tomás iluminou-se, os seus olhos eram agora dois sóis a brilhar por detrás das
lentes arredondadas, a sua boca parecia querer esboçar dois traços, que, a medo,
avançavam a tactear esse silêncio que tão bem o caracterizava. Não sejas precipitado,
recomecei eu, ele até acabou por se sentar à minha mesa e… Gonçalo voltou a
levantar-se: eis o clímax; a minha mãe e o cavaleiro andante!, agora é que me
vou mesmo deitar. És um parvo, admoestei-o eu, para vocês homens estas coisas
acabam sempre da mesma maneira, são mesmo primários, ainda pensei que fosses um
bocado diferente, mas afinal: gabarolices e ruminações do não feito é o vosso
lema, além disso, o rapaz tinha metade da minha idade.
( Hoje sei – porque ele me viria a dizer – que foi esta a passagem que
fez Tomás decidir-se pela sua partida no dia seguinte.)
E depois?! Depois nada, estás a imaginar-me ao lado de alguém com metade
da minha idade? Vocês analisam sempre tudo do lado do homem, dando uma imagem
repulsiva da mulher mais velha: a flacidez, a menor resistência ao esforço,
etc., mas alguma vez nos perguntaram algo sobre o assunto? Se nos interessava
tocar uma pele cheirando a talco e cueiros? És horrível!, resmungou Gonçalo.
Horrível não, estas coisas têm sempre duas versões: se vocês achincalham as
estrias por que não haveremos nós de fugir do acne? Abandonaram os dois a sala,
precipitadamente. Estava eu ajeitando as latas vazias da cerveja, os cinzeiros
sujos, quando Gonçalo regressou: foste de uma enorme crueldade. Eu?! Sim tu! Sempre
tão centrada nos livros e afinal não vês o que está debaixo do teu nariz, por
que pensas que o Tomás anda aqui às voltas em casa? Agarrei-me a uma das
estantes, siderada. O quê, não te achas uma mulher interessante que possa
atrair alguém também especial como o Tomás?! Eu não sabia o que pensar. Tudo se
abatera sobre mim de um jacto. Acho bem que te reabilites, rematou Gonçalo,
furioso, ele está a arranjar as coisas para se ir embora amanhã. Tantas teorias
e afinal… Por favor, peço-te, deixa-me sozinha!
Uma hora depois bati-lhe à porta do quarto. A luz estava ainda acesa,
passava das duas da manhã: mas… está a arrumar as malas?, avancei eu,
falsamente ingénua, aconteceu alguma coisa? Tomás, hirto, com um pólo na mão:
acho que devo ir, respondeu com voz sumida, quase um sussurro. Mas não pode ir
agora, Tomás! Não posso?! Não… eu vinha precisamente convidá-lo para vir uma
semana para a casa de Aveiro; o Gonçalo vai começar com as frequências e nós
íamos para lá. Silêncio. Tomás a compreender o que ambos já tínhamos
compreendido. Acha que devo ir?, perguntou triste, titubeante. Tem de vir! E
agarrei-lhe o braço. Diga que sim, insisti. E os seus olhos foram de novo dois
sóis por detrás das lentes, as suas palavras – sempre tão comedidas – foram
ainda mais serenas: partimos a que horas? E sorrimos, cúmplices.
Mateus, Victor Oliveira. Nem sempre a cidade é triste In "Letras com vida: Literatura, Cultura e Arte" Nº 4, 2º semestre 2011, Centro de Litªs. e Cultªs. Lusófonas e Europeias da Fac. de Letras da Univ. de Lisboa, pp 141 - 142.
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