(Apresentação do romance "Ficar" de Pompeu Miguel Martins na "Livª Pó dos Livros" no dia 25/1 )
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Classicismo e Modernidade na Obra de Pompeu
Miguel Martins
O novo
livro de Pompeu Miguel Martins, Ficar, apresenta-se-nos
sob a forma de uma narrativa que se vai desenvolvendo ao longo de 36 capítulos,
contudo, estes capítulos não se nos dão através de uma qualquer linearidade
narrativa, mas antes por um encadeamento tecido de acordo com a idade do
narrador, este – autodiegético e omnisciente -, vai, assim, expondo os vários
episódios da intriga de acordo com três categorias cronológicas distintas: a
infância, a juventude e o fim da idade adulta início da velhice. A esta cisão
da voz do narrador acrescentar-se-ão outras características ao nível das
categorias da narrativa, que afastarão definitivamente o romance da Pompeu
Miguel Martins das concepções romanescas que permaneceram sobretudo até à
década de 50, isto é, da clássica concepção de romance que vigorou de Eça e
Camilo até Carlos de Oliveira (os primeiros romances) e Ferreira de Castro: uma
concepção linear da narrativa onde o tempo cronológico correspondia ao tempo do
discurso, ao tempo por que se apresentavam os vários acontecimentos. Será, por
conseguinte, a partir dos anos 50 que, sobretudo Agustina Bessa-Luís (Sibila, 1954) e Vergílio Ferreira (Aparição, 1959) - mas também Fernanda
Botelho e Augusto Abelaira com os seus primeiros romances -, “incendeiam o romance português de
perspectivismos narrativos, espaciais e temporais.” ( In Miguel Real, “O
Romance Português Contemporâneo: 1950 – 2010”, p 84). Vemos, pois, que esta
obra de Pompeu Miguel Martins, e neste aspecto, se integra antes nesta segunda
opção estilística e não na primeira mais própria dos romances ligados ao
neo-realismo e ao presencismo. Outros elementos de Ficar podem ainda ser acrescentados: um, se o narratário da estória
é predominantemente extradiegético, não deixa de ser interessante, que, por
vezes, o narrador mude o rumo do seu dizer e se vire para um destinatário que
faz parte integrante da narrativa:
“ Como é
belo, Magda, um coração que palpita na ignorância do tempo. Quanto tempo bateu
o teu coração assim? Quantas vezes foste o que não soubeste? Quantas vezes
foste apenas o que sentiste? E era assim Portugal, o nosso tão íntimo Portugal,
meu amor (…) um país que mais ninguém soube senão nós. Lembras-te, Magda?” ( In “Ficar”, p 84);
dois, a modernidade desta obra, e no que diz respeito
à fragmentação do próprio texto, é ainda corroborada pelo facto do narrador
chamar a si o género e o subgénero literário que melhor se adapta ao momento da
enunciação, assim, vemo-lo saltar de um registo onde sobressai o ingénuo e o
infantil ( cf. capítulos ligados à infância):
“ Há meses
que o Lininho deixou de falar da mãe. Há meses que deixei de lhe falar da nossa
mãe para que ele não fique triste. Se ele voltar a falar, eu falo. Caso
contrário, não tocarei tão cedo nesse assunto. Tenho medo de o ver chorar. (In “Ficar”, p 96)
para outro mais
emotivo e engajado (cf. capítulos da juventude) ou ainda para um registo
vernacular e erudito (cf. capítulos do envelhecimento):
“ As leituras
têm inúmeras cadências. Todas elas vocacionadas para que mudemos o nosso mundo.
As leituras de fuga, carregadas de fúria, onde soubemos erguer a juventude e as
suas contradições (…) As leituras de infância, tão lentas, tão longas, ainda
que de histórias brevíssimas, a explicar-nos tão claramente (…) que a única
coisa objectiva é a subjectividade que cada coisa encerra em si mesma, que cada
fantasia tem sempre uma feroz correspondência ao mais imanente objecto, à mais
tangível e terrena situação. “ (In
“Ficar”, p 77)
vemos igualmente o narrador passar, por vezes, e de
acordo com as exigências da narração, do romance-ensaio – a fazer-nos lembrar,
em certos momentos, algumas das obras de Vergílio Ferreira, aliás, e a título
de curiosidade, seria interessante inventariar no livro de Pompeu Miguel
Martins a expressão “para sempre” (pp 33, 67, 73, 90 etc.), no que nos pareceu
ser uma homenagem àquele existencialista – para uma escrita assumidamente realista
e lírica. Mas em Ficar podemos ainda
encontrar o epistolar (pp 65-66 e p 67), assim como o poético ( exº: o último
parágrafo da página 42 é nitidamente poesia escrita em prosa!). Paralelamente a
tudo o que temos vindo a dizer, e que integra o romance de Pompeu Miguel
Martins no seio de uma escrita contemporânea, ocorre um assumidamente clássico
manipular do léxico e da gramática, facto – aliás – que pode ser encontrado em
alguns dos nossos grandes prosadores atuais: escutemos Miguel Real falando de Gonçalo M. Tavares: “ Se, perturbando o leitor, a apresentação
estilística das ideias, nos livros de prosa Gonçalo M. Tavares, é nova e a sua
manipulação fundamentada na evidenciação de uma lógica paradoxal, a gramática,
essa, é a mais clássica – frase curta, componentes sintáticos no seu lugar, a
tentativa bem-sucedida de fazer corresponder com clareza uma ideia a um
parágrafo. Porém, como as ideias se torturam labirinticamente entre si, as
frases ondeiam arrastando o leitor para uma contínua abertura ao espanto…” (In
“ O Romance Português Contemporâneo: 1950-2010”, p 164).
Este classicismo de Pompeu Miguel Martins no que diz
respeito à ordenação do sentido e do código acaba mesmo por ser ilustrado por
uma cena em que o narrador se encontra em
“St Germain a beber café com leite. A reler pela milésima vez a Marguerite “ (
cf. p 42), ora, se atendermos à data do episódio e ao facto de estarmos ante
releituras, só se pode estar a falar da Yourcenar ou, quando muito, da Duras da
primeira fase. Neste aspecto, portanto, Ficar
demarca-se dos romances de carácter desconstrucionista, que nas décadas de
60 e 70 ganharam foros de cidadania: Maria Gabriela Llansol ( Os pregos na erva, 1962), Maria Velho da
Costa (Maina Mendes, 1969), José
Cardoso Pires (O Delfim, 1969), Nuno
Bragança (A noite e o riso, 1969),
Rui Nunes (Sauromaquia, 1974) e de
novo Carlos de Oliveira (Finisterra, 1978)
e Fernanda Botelho (Lourenço é nome de
jogral, 1971). Se a Pompeu Miguel Martins, à imagem de muitos destes
romances de 60/70, interessa mostrar a “desconstrução” das instituições
políticas e sociais dominantes, os meios utilizados, no entanto, aproximam-no
antes desse realismo que vem dos anos 80
até aos nossos dias e que, por exemplo, o colocam junto de João de Melo (Gente feliz com lágrimas, 1988), João
Aguiar (Navegador solitário, 1996) e
Lídia Jorge (O vento assobiando nas gruas
2003 e Combateremos a sombra, 2007).
Seria mesmo interessante uma análise intertextual de Ficar com os romances desconstrutivistas, bem como com estes dois
de Lídia Jorge, veríamos que, ao contrario dos primeiros, a Pompeu Miguel
Martins não interessa a autonomização absoluta da categoria do tempo em relação
ao espaço e que, como em Lídia Jorge, as descrições, as reflexões e as
especulações jamais perdem de vista a realidade concreta. Em Pompeu Miguel
Martins as experiências com a linguagem apenas importam para uma intensificação
da poeticidade de um excerto ou para a clarificação racional de uma qualquer
especulação de cariz filosófico, jamais lhe interessa que o seu romance adquira
uma autonomia semântica e sintática relativamente à realidade concreta que o
narrador rememora ou vivencia. E é neste sentido que se enfatiza a já citada
modernidade desta obra na qual se incrustam, de modo não determinante, os
aspectos clássicos também aqui referidos. Ao falarmos de especulação e de
clarificação racional ocorre-nos a veemente salvaguarda do primado do estético,
enquanto território de universalidade, levada a cabo por Harold Bloom contra
diversas correntes teóricas como o novo historicismo, o neomarxismo, o
multiculturalismo, etc.: Bloom, ao fundamentar a centralidade de Shakespeare no
cânone ocidental, e enquanto enumera variáveis e justificações de tal posição,
refere que o dramaturgo inglês “ dá
origem à descrição de mudança individual dos seres na base da escuta de si
mesmos” (In “ O cânone ocidental “, p 60), e continua: “ A partir de Falstaff, Shakespeare acrescenta
à função da escrita imaginativa, que era instrução do modo como se deve falar
aos outros, aquela que é hoje a lição dominante (se bem que mais melancólica)
da poesia: como se deve falar com nós mesmos. “ ( Idem, p 61). Ora, é
exactamente tudo isto que gostaríamos de unificar: o romance Ficar de Pompeu Miguel Martins, apesar
de incluir, não só toda a caracterização já referida, mas também os mais
diversos monólogos de cariz político, ético, antropológico e metafísico, não se
apresenta como um desarticulado teórico-narrativo, mas antes como uma unidade
coerente e dotada de sentido a valorar, não numa perspectiva ideológica e/ou
historicista – apesar das inúmeras descrições sócio-políticas -, mas
exclusivamente através de uma grelha literária e estética e, nesse sentido –
como Bloom diz de Shakepeare –, é uma belíssima lição sobre a escuta e o estar-aqui
dada por um eu falando consigo mesmo:
“ Talvez um
dia eu consiga olhar para as ruas da Vila e não me lembrar do que magoa. Só me
magoa o que me falta. O que já tive e não tenho. Quando vou de casa para a
escola, olho para o chão e vejo o que está diferente de um dia para o outro. As
marcas, a sujidade, as folhas que caem das árvores, um pedaço de papel, uma
corisca de tabaco. E, olhando as diferenças, penso nelas e nas histórias que
lhes podem estar associadas (…). A vida diferente que cada um leva complica
tudo. É como estar a jogar um jogo em que se tem de aprender novas regras a
cada instante. O encontro das pessoas é um interminável e difícil jogo.” (In Ficar, p
86).
Apesar desta obra referir à saciedade o Tempo
(significando-o inclusivamente com maiúscula), não nos pareceu ver nela, como
objectivo primordial, um deambular em torno dessa entidade: aqui aborda-se
fundamentalmente a partilha daquilo que no ser humano é íntimo. O tempo,
enquanto categoria da narrativa, aparece fragmentado: o tempo histórico (Estado
Novo e pós-25 de Abril); o tempo cronológico (infância, juventude,
envelhecimento); o tempo do discurso (os acontecimentos não se apresentam de
forma linear, mas segundo o esquema: A,B,C; A,B,C, etc.); o tempo psicológico
jamais é experienciado pelo narrador de modo contínuo e raramente coincide com
a acção, pelo que várias vezes ele recorre a: analepses, prolepses, resumos e
elipses e, finalmente, o Tempo enquanto categoria ontológica não é mais do que
o palco em que a partilha do “si-próprio” ocorre:
“Tinha a certeza
de que nos encontraríamos para sempre nesse lanche, ao longo de uma tarde de
que jamais nos haveríamos de esquecer.” ( In Ficar, p 26)
“ Começarei por
guardar a minha intimidade, sabendo que há-de ser a espécie mais ameaçada (…).
Começarei pela intimidade porque aí guardo o maior segredo da minha existência:
o de nunca abdicar do lado íntimo da cada coisa, por mais pequena que seja. Não
acredito em coisas insignificantes. Tudo tem um significado…” ( Idem, p 27)
“ … a caminho e
Monmartre dava azo à minha felicidade e garantia-lhes o quanto se gravam nos
sítios as emoções que nos tornam únicos quando somos íntimos. “ (Idem, p
50)
Logo a partir das primeiras páginas deste livro Pompeu
Miguel Martins estabelece uma distinção da qual nunca se afasta ao longo da
obra: o que permanece, o que fica para sempre e, por outro lado, aquilo que
passa, o efémero. E o que fica é essa partilha do mais íntimo de cada ser (daí
ele dirigir-se frequentemente a Magda apesar da morte desta, dito de outro
modo: o relacional permanece apesar da ausência física de um dos elementos da
relação):
“ Era mesmo isto
o que eu tinha para te dizer, Magda. O que eu tinha para nos dizer, neste tão
difícil regresso a casa e às nossas coisas. O primeiro verbo que o Tempo
pronuncia não é o verbo ser, é o verbo ficar. Nunca te esqueças, tudo o que
vive, vive para ficar. E logo a seguir o Amor, Magda, logo a seguir.” (In Ficar, p 102)
Repare-se na imediata substituição do “te” pelo “nos”
logo no início do excerto: a partilha amorosa (“Logo a seguir o Amor…”) deriva
necessariamente dessa fusão do íntimo (te/nos), que, no entanto e
paradoxalmente, nunca anula a individualidade – quando se comunga com o Outro,
no Tempo, aquilo que é da ordem do essencial, tudo o que é diminuto e
insignificante desaparece, e o que se alcança é da ordem do Eterno, nada já
pode ameaçar a sua Presença, o seu FICAR.
VICTOR OLIVEIRA MATEUS