(Apresentação do romance "Ficar" de Pompeu Miguel Martins na "Livª Pó dos Livros" no dia 25/1 )
.
Classicismo e Modernidade na Obra de Pompeu
Miguel Martins
“ Como é
belo, Magda, um coração que palpita na ignorância do tempo. Quanto tempo bateu
o teu coração assim? Quantas vezes foste o que não soubeste? Quantas vezes
foste apenas o que sentiste? E era assim Portugal, o nosso tão íntimo Portugal,
meu amor (…) um país que mais ninguém soube senão nós. Lembras-te, Magda?” ( In “Ficar”, p 84);
dois, a modernidade desta obra, e no que diz respeito
à fragmentação do próprio texto, é ainda corroborada pelo facto do narrador
chamar a si o género e o subgénero literário que melhor se adapta ao momento da
enunciação, assim, vemo-lo saltar de um registo onde sobressai o ingénuo e o
infantil ( cf. capítulos ligados à infância):
“ Há meses
que o Lininho deixou de falar da mãe. Há meses que deixei de lhe falar da nossa
mãe para que ele não fique triste. Se ele voltar a falar, eu falo. Caso
contrário, não tocarei tão cedo nesse assunto. Tenho medo de o ver chorar. (In “Ficar”, p 96)
para outro mais
emotivo e engajado (cf. capítulos da juventude) ou ainda para um registo
vernacular e erudito (cf. capítulos do envelhecimento):
“ As leituras
têm inúmeras cadências. Todas elas vocacionadas para que mudemos o nosso mundo.
As leituras de fuga, carregadas de fúria, onde soubemos erguer a juventude e as
suas contradições (…) As leituras de infância, tão lentas, tão longas, ainda
que de histórias brevíssimas, a explicar-nos tão claramente (…) que a única
coisa objectiva é a subjectividade que cada coisa encerra em si mesma, que cada
fantasia tem sempre uma feroz correspondência ao mais imanente objecto, à mais
tangível e terrena situação. “ (In
“Ficar”, p 77)
vemos igualmente o narrador passar, por vezes, e de
acordo com as exigências da narração, do romance-ensaio – a fazer-nos lembrar,
em certos momentos, algumas das obras de Vergílio Ferreira, aliás, e a título
de curiosidade, seria interessante inventariar no livro de Pompeu Miguel
Martins a expressão “para sempre” (pp 33, 67, 73, 90 etc.), no que nos pareceu
ser uma homenagem àquele existencialista – para uma escrita assumidamente realista
e lírica. Mas em Ficar podemos ainda
encontrar o epistolar (pp 65-66 e p 67), assim como o poético ( exº: o último
parágrafo da página 42 é nitidamente poesia escrita em prosa!). Paralelamente a
tudo o que temos vindo a dizer, e que integra o romance de Pompeu Miguel
Martins no seio de uma escrita contemporânea, ocorre um assumidamente clássico
manipular do léxico e da gramática, facto – aliás – que pode ser encontrado em
alguns dos nossos grandes prosadores atuais: escutemos Miguel Real falando de Gonçalo M. Tavares: “ Se, perturbando o leitor, a apresentação
estilística das ideias, nos livros de prosa Gonçalo M. Tavares, é nova e a sua
manipulação fundamentada na evidenciação de uma lógica paradoxal, a gramática,
essa, é a mais clássica – frase curta, componentes sintáticos no seu lugar, a
tentativa bem-sucedida de fazer corresponder com clareza uma ideia a um
parágrafo. Porém, como as ideias se torturam labirinticamente entre si, as
frases ondeiam arrastando o leitor para uma contínua abertura ao espanto…” (In
“ O Romance Português Contemporâneo: 1950-2010”, p 164).
Este classicismo de Pompeu Miguel Martins no que diz
respeito à ordenação do sentido e do código acaba mesmo por ser ilustrado por
uma cena em que o narrador se encontra em
“St Germain a beber café com leite. A reler pela milésima vez a Marguerite “ (
cf. p 42), ora, se atendermos à data do episódio e ao facto de estarmos ante
releituras, só se pode estar a falar da Yourcenar ou, quando muito, da Duras da
primeira fase. Neste aspecto, portanto, Ficar
demarca-se dos romances de carácter desconstrucionista, que nas décadas de
60 e 70 ganharam foros de cidadania: Maria Gabriela Llansol ( Os pregos na erva, 1962), Maria Velho da
Costa (Maina Mendes, 1969), José
Cardoso Pires (O Delfim, 1969), Nuno
Bragança (A noite e o riso, 1969),
Rui Nunes (Sauromaquia, 1974) e de
novo Carlos de Oliveira (Finisterra, 1978)
e Fernanda Botelho (Lourenço é nome de
jogral, 1971). Se a Pompeu Miguel Martins, à imagem de muitos destes
romances de 60/70, interessa mostrar a “desconstrução” das instituições
políticas e sociais dominantes, os meios utilizados, no entanto, aproximam-no
antes desse realismo que vem dos anos 80
até aos nossos dias e que, por exemplo, o colocam junto de João de Melo (Gente feliz com lágrimas, 1988), João
Aguiar (Navegador solitário, 1996) e
Lídia Jorge (O vento assobiando nas gruas
2003 e Combateremos a sombra, 2007).
Seria mesmo interessante uma análise intertextual de Ficar com os romances desconstrutivistas, bem como com estes dois
de Lídia Jorge, veríamos que, ao contrario dos primeiros, a Pompeu Miguel
Martins não interessa a autonomização absoluta da categoria do tempo em relação
ao espaço e que, como em Lídia Jorge, as descrições, as reflexões e as
especulações jamais perdem de vista a realidade concreta. Em Pompeu Miguel
Martins as experiências com a linguagem apenas importam para uma intensificação
da poeticidade de um excerto ou para a clarificação racional de uma qualquer
especulação de cariz filosófico, jamais lhe interessa que o seu romance adquira
uma autonomia semântica e sintática relativamente à realidade concreta que o
narrador rememora ou vivencia. E é neste sentido que se enfatiza a já citada
modernidade desta obra na qual se incrustam, de modo não determinante, os
aspectos clássicos também aqui referidos. Ao falarmos de especulação e de
clarificação racional ocorre-nos a veemente salvaguarda do primado do estético,
enquanto território de universalidade, levada a cabo por Harold Bloom contra
diversas correntes teóricas como o novo historicismo, o neomarxismo, o
multiculturalismo, etc.: Bloom, ao fundamentar a centralidade de Shakespeare no
cânone ocidental, e enquanto enumera variáveis e justificações de tal posição,
refere que o dramaturgo inglês “ dá
origem à descrição de mudança individual dos seres na base da escuta de si
mesmos” (In “ O cânone ocidental “, p 60), e continua: “ A partir de Falstaff, Shakespeare acrescenta
à função da escrita imaginativa, que era instrução do modo como se deve falar
aos outros, aquela que é hoje a lição dominante (se bem que mais melancólica)
da poesia: como se deve falar com nós mesmos. “ ( Idem, p 61). Ora, é
exactamente tudo isto que gostaríamos de unificar: o romance Ficar de Pompeu Miguel Martins, apesar
de incluir, não só toda a caracterização já referida, mas também os mais
diversos monólogos de cariz político, ético, antropológico e metafísico, não se
apresenta como um desarticulado teórico-narrativo, mas antes como uma unidade
coerente e dotada de sentido a valorar, não numa perspectiva ideológica e/ou
historicista – apesar das inúmeras descrições sócio-políticas -, mas
exclusivamente através de uma grelha literária e estética e, nesse sentido –
como Bloom diz de Shakepeare –, é uma belíssima lição sobre a escuta e o estar-aqui
dada por um eu falando consigo mesmo:
“ Talvez um
dia eu consiga olhar para as ruas da Vila e não me lembrar do que magoa. Só me
magoa o que me falta. O que já tive e não tenho. Quando vou de casa para a
escola, olho para o chão e vejo o que está diferente de um dia para o outro. As
marcas, a sujidade, as folhas que caem das árvores, um pedaço de papel, uma
corisca de tabaco. E, olhando as diferenças, penso nelas e nas histórias que
lhes podem estar associadas (…). A vida diferente que cada um leva complica
tudo. É como estar a jogar um jogo em que se tem de aprender novas regras a
cada instante. O encontro das pessoas é um interminável e difícil jogo.” (In Ficar, p
86).
Apesar desta obra referir à saciedade o Tempo
(significando-o inclusivamente com maiúscula), não nos pareceu ver nela, como
objectivo primordial, um deambular em torno dessa entidade: aqui aborda-se
fundamentalmente a partilha daquilo que no ser humano é íntimo. O tempo,
enquanto categoria da narrativa, aparece fragmentado: o tempo histórico (Estado
Novo e pós-25 de Abril); o tempo cronológico (infância, juventude,
envelhecimento); o tempo do discurso (os acontecimentos não se apresentam de
forma linear, mas segundo o esquema: A,B,C; A,B,C, etc.); o tempo psicológico
jamais é experienciado pelo narrador de modo contínuo e raramente coincide com
a acção, pelo que várias vezes ele recorre a: analepses, prolepses, resumos e
elipses e, finalmente, o Tempo enquanto categoria ontológica não é mais do que
o palco em que a partilha do “si-próprio” ocorre:
“Tinha a certeza
de que nos encontraríamos para sempre nesse lanche, ao longo de uma tarde de
que jamais nos haveríamos de esquecer.” ( In Ficar, p 26)
“ Começarei por
guardar a minha intimidade, sabendo que há-de ser a espécie mais ameaçada (…).
Começarei pela intimidade porque aí guardo o maior segredo da minha existência:
o de nunca abdicar do lado íntimo da cada coisa, por mais pequena que seja. Não
acredito em coisas insignificantes. Tudo tem um significado…” ( Idem, p 27)
“ … a caminho e
Monmartre dava azo à minha felicidade e garantia-lhes o quanto se gravam nos
sítios as emoções que nos tornam únicos quando somos íntimos. “ (Idem, p
50)
Logo a partir das primeiras páginas deste livro Pompeu
Miguel Martins estabelece uma distinção da qual nunca se afasta ao longo da
obra: o que permanece, o que fica para sempre e, por outro lado, aquilo que
passa, o efémero. E o que fica é essa partilha do mais íntimo de cada ser (daí
ele dirigir-se frequentemente a Magda apesar da morte desta, dito de outro
modo: o relacional permanece apesar da ausência física de um dos elementos da
relação):
“ Era mesmo isto
o que eu tinha para te dizer, Magda. O que eu tinha para nos dizer, neste tão
difícil regresso a casa e às nossas coisas. O primeiro verbo que o Tempo
pronuncia não é o verbo ser, é o verbo ficar. Nunca te esqueças, tudo o que
vive, vive para ficar. E logo a seguir o Amor, Magda, logo a seguir.” (In Ficar, p 102)
Repare-se na imediata substituição do “te” pelo “nos”
logo no início do excerto: a partilha amorosa (“Logo a seguir o Amor…”) deriva
necessariamente dessa fusão do íntimo (te/nos), que, no entanto e
paradoxalmente, nunca anula a individualidade – quando se comunga com o Outro,
no Tempo, aquilo que é da ordem do essencial, tudo o que é diminuto e
insignificante desaparece, e o que se alcança é da ordem do Eterno, nada já
pode ameaçar a sua Presença, o seu FICAR.
VICTOR OLIVEIRA MATEUS