25/01/13

Apresentação de livro...

 
 
(Apresentação do romance "Ficar" de Pompeu Miguel Martins na "Livª Pó dos Livros" no dia 25/1 )
 
 
.
            Classicismo e Modernidade na Obra de Pompeu Miguel Martins

      O novo livro de Pompeu Miguel Martins, Ficar, apresenta-se-nos sob a forma de uma narrativa que se vai desenvolvendo ao longo de 36 capítulos, contudo, estes capítulos não se nos dão através de uma qualquer linearidade narrativa, mas antes por um encadeamento tecido de acordo com a idade do narrador, este – autodiegético e omnisciente -, vai, assim, expondo os vários episódios da intriga de acordo com três categorias cronológicas distintas: a infância, a juventude e o fim da idade adulta início da velhice. A esta cisão da voz do narrador acrescentar-se-ão outras características ao nível das categorias da narrativa, que afastarão definitivamente o romance da Pompeu Miguel Martins das concepções romanescas que permaneceram sobretudo até à década de 50, isto é, da clássica concepção de romance que vigorou de Eça e Camilo até Carlos de Oliveira (os primeiros romances) e Ferreira de Castro: uma concepção linear da narrativa onde o tempo cronológico correspondia ao tempo do discurso, ao tempo por que se apresentavam os vários acontecimentos. Será, por conseguinte, a partir dos anos 50 que, sobretudo Agustina Bessa-Luís (Sibila, 1954) e Vergílio Ferreira (Aparição, 1959) - mas também Fernanda Botelho e Augusto Abelaira com os seus primeiros romances -, “incendeiam o romance português de perspectivismos narrativos, espaciais e temporais.” ( In Miguel Real, “O Romance Português Contemporâneo: 1950 – 2010”, p 84). Vemos, pois, que esta obra de Pompeu Miguel Martins, e neste aspecto, se integra antes nesta segunda opção estilística e não na primeira mais própria dos romances ligados ao neo-realismo e ao presencismo. Outros elementos de Ficar podem ainda ser acrescentados: um, se o narratário da estória é predominantemente extradiegético, não deixa de ser interessante, que, por vezes, o narrador mude o rumo do seu dizer e se vire para um destinatário que faz parte integrante da narrativa:

“ Como é belo, Magda, um coração que palpita na ignorância do tempo. Quanto tempo bateu o teu coração assim? Quantas vezes foste o que não soubeste? Quantas vezes foste apenas o que sentiste? E era assim Portugal, o nosso tão íntimo Portugal, meu amor (…) um país que mais ninguém soube senão nós. Lembras-te, Magda?” ( In “Ficar”, p 84);

dois, a modernidade desta obra, e no que diz respeito à fragmentação do próprio texto, é ainda corroborada pelo facto do narrador chamar a si o género e o subgénero literário que melhor se adapta ao momento da enunciação, assim, vemo-lo saltar de um registo onde sobressai o ingénuo e o infantil ( cf. capítulos ligados à infância):

“ Há meses que o Lininho deixou de falar da mãe. Há meses que deixei de lhe falar da nossa mãe para que ele não fique triste. Se ele voltar a falar, eu falo. Caso contrário, não tocarei tão cedo nesse assunto. Tenho medo de o ver chorar. (In “Ficar”, p 96)

 para outro mais emotivo e engajado (cf. capítulos da juventude) ou ainda para um registo vernacular e erudito (cf. capítulos do envelhecimento):

“ As leituras têm inúmeras cadências. Todas elas vocacionadas para que mudemos o nosso mundo. As leituras de fuga, carregadas de fúria, onde soubemos erguer a juventude e as suas contradições (…) As leituras de infância, tão lentas, tão longas, ainda que de histórias brevíssimas, a explicar-nos tão claramente (…) que a única coisa objectiva é a subjectividade que cada coisa encerra em si mesma, que cada fantasia tem sempre uma feroz correspondência ao mais imanente objecto, à mais tangível e terrena situação. “ (In “Ficar”, p 77)

vemos igualmente o narrador passar, por vezes, e de acordo com as exigências da narração, do romance-ensaio – a fazer-nos lembrar, em certos momentos, algumas das obras de Vergílio Ferreira, aliás, e a título de curiosidade, seria interessante inventariar no livro de Pompeu Miguel Martins a expressão “para sempre” (pp 33, 67, 73, 90 etc.), no que nos pareceu ser uma homenagem àquele existencialista – para uma escrita assumidamente realista e lírica. Mas em Ficar podemos ainda encontrar o epistolar (pp 65-66 e p 67), assim como o poético ( exº: o último parágrafo da página 42 é nitidamente poesia escrita em prosa!). Paralelamente a tudo o que temos vindo a dizer, e que integra o romance de Pompeu Miguel Martins no seio de uma escrita contemporânea, ocorre um assumidamente clássico manipular do léxico e da gramática, facto – aliás – que pode ser encontrado em alguns dos nossos grandes prosadores atuais: escutemos  Miguel Real falando de Gonçalo M. Tavares: “ Se, perturbando o leitor, a apresentação estilística das ideias, nos livros de prosa Gonçalo M. Tavares, é nova e a sua manipulação fundamentada na evidenciação de uma lógica paradoxal, a gramática, essa, é a mais clássica – frase curta, componentes sintáticos no seu lugar, a tentativa bem-sucedida de fazer corresponder com clareza uma ideia a um parágrafo. Porém, como as ideias se torturam labirinticamente entre si, as frases ondeiam arrastando o leitor para uma contínua abertura ao espanto…” (In “ O Romance Português Contemporâneo: 1950-2010”, p 164).

Este classicismo de Pompeu Miguel Martins no que diz respeito à ordenação do sentido e do código acaba mesmo por ser ilustrado por uma cena em que o narrador se encontra em “St Germain a beber café com leite. A reler pela milésima vez a Marguerite “ ( cf. p 42), ora, se atendermos à data do episódio e ao facto de estarmos ante releituras, só se pode estar a falar da Yourcenar ou, quando muito, da Duras da primeira fase. Neste aspecto, portanto, Ficar demarca-se dos romances de carácter desconstrucionista, que nas décadas de 60 e 70 ganharam foros de cidadania: Maria Gabriela Llansol ( Os pregos na erva, 1962), Maria Velho da Costa (Maina Mendes, 1969), José Cardoso Pires (O Delfim, 1969), Nuno Bragança (A noite e o riso, 1969), Rui Nunes (Sauromaquia, 1974) e de novo Carlos de Oliveira (Finisterra, 1978) e Fernanda Botelho (Lourenço é nome de jogral, 1971). Se a Pompeu Miguel Martins, à imagem de muitos destes romances de 60/70, interessa mostrar a “desconstrução” das instituições políticas e sociais dominantes, os meios utilizados, no entanto, aproximam-no antes desse realismo que  vem dos anos 80 até aos nossos dias e que, por exemplo, o colocam junto de João de Melo (Gente feliz com lágrimas, 1988), João Aguiar (Navegador solitário, 1996) e Lídia Jorge (O vento assobiando nas gruas 2003 e Combateremos a sombra, 2007). Seria mesmo interessante uma análise intertextual de Ficar com os romances desconstrutivistas, bem como com estes dois de Lídia Jorge, veríamos que, ao contrario dos primeiros, a Pompeu Miguel Martins não interessa a autonomização absoluta da categoria do tempo em relação ao espaço e que, como em Lídia Jorge, as descrições, as reflexões e as especulações jamais perdem de vista a realidade concreta. Em Pompeu Miguel Martins as experiências com a linguagem apenas importam para uma intensificação da poeticidade de um excerto ou para a clarificação racional de uma qualquer especulação de cariz filosófico, jamais lhe interessa que o seu romance adquira uma autonomia semântica e sintática relativamente à realidade concreta que o narrador rememora ou vivencia. E é neste sentido que se enfatiza a já citada modernidade desta obra na qual se incrustam, de modo não determinante, os aspectos clássicos também aqui referidos. Ao falarmos de especulação e de clarificação racional ocorre-nos a veemente salvaguarda do primado do estético, enquanto território de universalidade, levada a cabo por Harold Bloom contra diversas correntes teóricas como o novo historicismo, o neomarxismo, o multiculturalismo, etc.: Bloom, ao fundamentar a centralidade de Shakespeare no cânone ocidental, e enquanto enumera variáveis e justificações de tal posição, refere que o dramaturgo inglês “ dá origem à descrição de mudança individual dos seres na base da escuta de si mesmos” (In “ O cânone ocidental “, p 60), e continua: “ A partir de Falstaff, Shakespeare acrescenta à função da escrita imaginativa, que era instrução do modo como se deve falar aos outros, aquela que é hoje a lição dominante (se bem que mais melancólica) da poesia: como se deve falar com nós mesmos. “ ( Idem, p 61). Ora, é exactamente tudo isto que gostaríamos de unificar: o romance Ficar de Pompeu Miguel Martins, apesar de incluir, não só toda a caracterização já referida, mas também os mais diversos monólogos de cariz político, ético, antropológico e metafísico, não se apresenta como um desarticulado teórico-narrativo, mas antes como uma unidade coerente e dotada de sentido a valorar, não numa perspectiva ideológica e/ou historicista – apesar das inúmeras descrições sócio-políticas -, mas exclusivamente através de uma grelha literária e estética e, nesse sentido – como Bloom diz de Shakepeare –, é uma belíssima lição sobre a escuta e o estar-aqui dada por um eu falando consigo mesmo:

“ Talvez um dia eu consiga olhar para as ruas da Vila e não me lembrar do que magoa. Só me magoa o que me falta. O que já tive e não tenho. Quando vou de casa para a escola, olho para o chão e vejo o que está diferente de um dia para o outro. As marcas, a sujidade, as folhas que caem das árvores, um pedaço de papel, uma corisca de tabaco. E, olhando as diferenças, penso nelas e nas histórias que lhes podem estar associadas (…). A vida diferente que cada um leva complica tudo. É como estar a jogar um jogo em que se tem de aprender novas regras a cada instante. O encontro das pessoas é um interminável e difícil jogo.” (In Ficar, p 86).

Apesar desta obra referir à saciedade o Tempo (significando-o inclusivamente com maiúscula), não nos pareceu ver nela, como objectivo primordial, um deambular em torno dessa entidade: aqui aborda-se fundamentalmente a partilha daquilo que no ser humano é íntimo. O tempo, enquanto categoria da narrativa, aparece fragmentado: o tempo histórico (Estado Novo e pós-25 de Abril); o tempo cronológico (infância, juventude, envelhecimento); o tempo do discurso (os acontecimentos não se apresentam de forma linear, mas segundo o esquema: A,B,C; A,B,C, etc.); o tempo psicológico jamais é experienciado pelo narrador de modo contínuo e raramente coincide com a acção, pelo que várias vezes ele recorre a: analepses, prolepses, resumos e elipses e, finalmente, o Tempo enquanto categoria ontológica não é mais do que o palco em que a partilha do “si-próprio” ocorre:

Tinha a certeza de que nos encontraríamos para sempre nesse lanche, ao longo de uma tarde de que jamais nos haveríamos de esquecer.” ( In Ficar, p 26)

Começarei por guardar a minha intimidade, sabendo que há-de ser a espécie mais ameaçada (…). Começarei pela intimidade porque aí guardo o maior segredo da minha existência: o de nunca abdicar do lado íntimo da cada coisa, por mais pequena que seja. Não acredito em coisas insignificantes. Tudo tem um significado…” ( Idem, p 27)

… a caminho e Monmartre dava azo à minha felicidade e garantia-lhes o quanto se gravam nos sítios as emoções que nos tornam únicos quando somos íntimos. “ (Idem, p 50)

Logo a partir das primeiras páginas deste livro Pompeu Miguel Martins estabelece uma distinção da qual nunca se afasta ao longo da obra: o que permanece, o que fica para sempre e, por outro lado, aquilo que passa, o efémero. E o que fica é essa partilha do mais íntimo de cada ser (daí ele dirigir-se frequentemente a Magda apesar da morte desta, dito de outro modo: o relacional permanece apesar da ausência física de um dos elementos da relação):

Era mesmo isto o que eu tinha para te dizer, Magda. O que eu tinha para nos dizer, neste tão difícil regresso a casa e às nossas coisas. O primeiro verbo que o Tempo pronuncia não é o verbo ser, é o verbo ficar. Nunca te esqueças, tudo o que vive, vive para ficar. E logo a seguir o Amor, Magda, logo a seguir.” (In Ficar, p 102)

Repare-se na imediata substituição do “te” pelo “nos” logo no início do excerto: a partilha amorosa (“Logo a seguir o Amor…”) deriva necessariamente dessa fusão do íntimo (te/nos), que, no entanto e paradoxalmente, nunca anula a individualidade – quando se comunga com o Outro, no Tempo, aquilo que é da ordem do essencial, tudo o que é diminuto e insignificante desaparece, e o que se alcança é da ordem do Eterno, nada já pode ameaçar a sua Presença, o seu FICAR.

 

                                                              VICTOR   OLIVEIRA   MATEUS