28/08/09

"Marcello Caetano - O mito esvaziado"
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Marcello Caetano. O Homem que Perdeu a Fé, de Manuela Goucha Soares, "a biografia completa", segundo reza o anúncio da capa, possui o dom de reunir o melhor da reportagem jornalística com o melhor da investigação histórica. Dito de outro modo, reúne a narrativa da existência de um homem político com a descoberta e a inventariação de fontes históricas novas que iluminam de uma outra luz a vida do biografado.
No campo da biografia, todos os cuidados são poucos quanto ao escrúpulo e ao rigor da análise, porque não raro, em Portugal, sobretudo no aspecto político, se confunde biografia com hagiografia, como se constata pela recente publicação de biografias sobre políticos vivos ou sobre figuras carismáticas do Estado Novo. Descansemos, porém, neste caso.
Com efeito, o trabalho de Manuela Goucha Soares não só segue uma rigorosa metodologia jornalística (pesquisa, entrevistas, testemunhos escritos e orais, aplicação da regra do contraditório, deslocação aos lugares, neste caso ao Brasil), como aplica igualmente regras básicas da investigação histórica (a pesquisa em fontes originais e a descoberta de novos documentos, inclusive fotos), como, igualmente, propõe um fio condutor analítico-interpretativo na história colectiva.
Neste último caso, a autora conseguiu uma vincada harmonia entre a vida particular de Marcello Caetano e os acontecimentos públicos que lhe iam moldando o destino político, evidenciando um entrelaçamento muito forte entre a evolução do país e a evolução da vida do biografado. Polémico apenas o subtítulo (O Homem que perdeu a Fé) - a hipostasiação de um facto íntimo da vida do biografado que não explica nem a sua actividade política nem interfere nas suas intervenções públicas.
Que nos dá a ler a autora através da narração da vida de Marcello Caetano? A grande, grande conclusão que se extrai do encadeamento dos factos vivenciais apresentados reside na circunstância, até hoje não suficientemente relevada do ponto de vista histórico, que - primeiro - Marcello Caetano nunca superou o estatuto de um funcionário superior do Estado Novo, nem sempre passivo, mas sempre obediente ao chefe, isto é, a Oliveira Salazar; segundo, quando lhe faltou o chefe, não o soube substituir através de políticas próprias actualizadas, segundo um horizonte político próprio, desbloqueador do nó górdio em que se tornara Portugal, limitando-se a prolongar as do passado ("complexo" do funcionário superior). Quando sucedeu a vacatura de Primeiro-Ministro, Marcello Caetano evidenciou os seus genuínos limites políticos, transpondo para este alto cargo político e administrativo a estrutura mental e as categorias sociais próprias de um funcionário há 40 anos conivente e convivente com o regime, explorando os limites deste, mas evidenciando uma forte incapacidade para o renovar.
Com efeito, como funcionário superior, Caetano encontra-se ao lado de Salazar desde o primeiro minuto do regime do Estado Novo. Este convida-o para Subsecretário de Estado das Corporações e Previdência Social, Marcello Caetano recusa (encontra-se em plena preparação das provas de doutoramento) e Salazar nomeia-o para a Comissão Executiva da Comissão Central da União Nacional com a incumbência de preparar o primeiro congresso desta organização política. Mais concordante ou mais discordante, Marcello Caetano frequenta o pequeno círculo de conselheiros de Salazar durante 30 anos, até ao final da década de 50. As suas discordâncias, porém, nunca são levadas ao limite da ruptura, muito longe disso, revelando - conclui-se após a leitura do livro de Manuela Goucha Soares - "pequenos atritos tácticos e conjunturais mas grandes afinidades estratégicas ao nível da criação e organização corporativa do Estado Novo".
De facto, não foi a política que fez de Marcello Caetano um grande homem, mas os sesu estudos de Direito - este seria, porém, um caminho que daria um outro tipo de biografia (a "biografia intelectual"), que, estatuindo-se apenas como um plano da vida do biografado, Manuela Goucha Soares não seguiu, e muito bem, oferecendo-nos um retrato mais completo.
De facto, como classificar senão de funcionário superior incondicional do regime um jovem político (35 anos) nomeado para fundar e dirigir a Mocidade Portuguesa? Que outro senão um fiel e leal discípulo poderia escrever as cartas ao chefe dadas a conhecer pela autora (pp. 81 - 82)? Que outro senão um funcionário superior poderia ser nomeado Ministro das Colónias, em 1944, em plena II Guerra Mundial, seguindo de imediato em viagem para as colónias de modo a promover o cerrar de fileiras dos territórios ultramarinos em torno da política do Chefe? Que a outro senão a um indefectível exigiria ao chefe mais e melhor no campo social e corporativo contra a "burguesia capitalista" (p.97)? Que outro senão um lealíssimo colaborador poderia ser nomeado, em 1947, presidente da Comissão Executiva da União Nacional, alertando o chefe para a ineficácia da propaganda do Estado Novo, que não arregimentava as "massas populares" (p. 107)? Que outro senão um fidelíssimo poderia ser nomeado Presidente da Câmara Corporativa em 1949?
Face à fidelidade ao regime, haveria, de facto, dissonância crítica com o chefe? Como político, Marcello Caetano é fiel; como intelectual, crítico. Como a autora evidencia, é justamente a crise académica de 1962 que revela a diferença entre o político e o intelectual, levando a um afastamento.
Porém, após a subida ao lugar do Chefe, em 1968, o mito esvazia-se de todo. No essencial, Marcello Caetano, preso a uma educação integralista e incapaz de encontrar verdadeiras alternativas para o bloqueio em que Portugal vivia (Guerra Colonial; existência de uma classe média sem expressão no espaço público; isolamento internacional...), segue a política do seu antecessor, evidenciando a sua real face política - a de um funcionário superior do regime. Com efeito, lendo a biografia de Marcello Caetano por Manuela Goucha Soares rápido se conclui que, dentro de um século, a História não registará o seu nome, "saltando" de Oliveira Salazar directamente para a revolução do 25 de Abril de 1974, como a História não regista (senão por académicos e eruditos) o nome do ministro sucessor de João Franco, entre 1908 e 1910, "saltando" do nome deste para a implementação da I República, em 5 de Outubro de 1910.
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(Manuela Goucha Soares, Marcello Caetano. O Homem que perdeu a Fé, A Esfera dos Livros, 293pp, 30 euros)
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Miguel Real In "Jornal de Letras" 1014, Agosto, 2009.
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27/08/09

"A demissão da vaidade permite a lucidez"

"Imaginary voyage", Wies - Austria (2008) foto de Tomaz Crnej


A demissão da vaidade permite a lucidez
E alivia o peso das horas correctas enquanto
O zelo da alegria enuncia o respeito pela dor.

A ausência de desejo submete a cor à dúvida,
Compromete a seriedade e o caos numa mesma
Espera e limita o espaço onde se movimentam

Os braços. A morte da ternura é demasiado
Lenta e avança com uma delicadeza suave,
Melodiosa até, que rompe limites até então

Seguros e nunca postos em causa pelo corpo.
A água escorre através das fendas provocadas
Pela seca continuada. Há sinais de

Mudança legitimados pela frescura
Dos arbustos que ladeiam o caminho incerto
Que conduz a um silêncio em construção, uma

Ideia indefinida de prazer sensual e puro
Que permanece. Toda a paz respira dentro
De uma loucura reconhecida pelos homens

Que seguem a luz reveladora dos limites
E acrescenta à harmonia a sede líquida
Da exclamação correcta. Há-de chegar o fim.

Rui Almeida in "Lábio Cortado", Livro do Dia Editores,
Torres Vedras, 2009, p 47.
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"Sei que recordo tudo em certos momentos."


"Shedding Skin", Portland, Oregon - 2008, foto de Andrea Galluzzo
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A prontidão das sombras resume
Um simples corpo e resvala sinuosa.
Sei que recordo tudo em certos momentos.
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Recordo-te até como se te chamasse,
Como se corresse através do caminho
Que vais preparando junto aos precipícios.
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Mas a memória revela o que não sei,
Desfaz sequências de nomes até ti.
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Repito a violência e seguro uma pedra
Com as mãos - tal como as tuas - já perdidas.
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Repito toda a fragilidade que o teu peso insinua
E derramo a voz ao limite - ossos e carne
Que nos atiram ao chão com o afecto da dor.
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Rui Almeida In "Lábio Cortado", Livro do Dia Editores,
Torres Vedras, 2009, p 27.
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25/08/09




"Eu Me Deleto"
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1
Eu me dilato:
rejeito a vida prêt-à-porter de massa e consumismo
fujo da matriz, evito o invólucro que me oferece como outro:
umbigo-conexão em fôrma e forma de fora para dentro
formulo e me reformulo
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mas estou infectado pelo vírus
electrônico, invadido por hackers de plantão
eliminando minha individualidade
- inteligência destrutiva
viral, virtual, visceral, vital.
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Me estendo, me simulo e dissimulo:
continuo sendo dionisíaco, lúdico
com o complexo de Narciso:
e me excomungo, me abduzo, me exorcizo.
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Como tudo é instantâneo
nem reflito
- espelho a derrocar a própria imagem.
Sou um rito de passagem.
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2
Eu me delato:
tudo pela onipresença
pela ubiquidade absoluta
- eu-prótese, eu-extensão
do modo de acomodar e conjugar
os mitos e as alegorias.
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3
E me deleto:
atrelado à rede total que me esgarça, me dispersa.
Me desloco, descolo, me desintegro, me desconecto.
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Estou cada vez mais fuso, parafuso, confuso
num esquema difuso
pelas regras da nanotecnologia
- daí a minha tecnofobia, minha agonia.
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É mesmo o fim da ideologia?
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Na missa virtual
em vez da pomba da paz
aparece uma vagina cósmica
denunciando minha origem.
Onde o antivírus? Cadê a vacina?
Vertigem do ser.
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Antonio Miranda In "Despertar das Águas", Thesaurus Editora,
Brasília, 2006, pp 74 - 76.
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24/08/09




"Rio de Janeiro Madrugada 1957"

que importa já passou nada restou
daquelas noites mornas e sem normas
pelas ruelas sujas paredes descascadas
da Lapa detrás dos Arcos prostitutas

mendigos tabuleiros angu com torresmo
travestis drogados acuados grasnando
de saltos altos seios postiços línguas
masturbando clientes colados aos postes

garotos de programa na Galeria Alasca
mostrando pénis rijos como mercadorias
vendedores de amendoim torradinho
lá vem o camburão arrasando quarteirão

sexo ali na praia ali mesmo luzes
refletidas corpos nus fricção orgasmo
curra sofreguidão susto prostração
que a noite é longa e os sonhos aguçados

um intelectual na porta do boteco cisma
um resto de samba-canção desnaturado
o bonde trepida os marinheiros urinam
e as igrejas dormem e os ratos assustados

os jornais da madrugada pesam nas calçadas
os bêbedos os malandros os vendedores de rua
os casais que saem dos cabarés suados
e o velho que dorme no banco de praça

e as luzes da avenida reverberando
e as colunas mortas e as portas fechadas
os anúncios luminosos as hospedarias
e os sobrados envergonhados sonolentos

não há lua sob um céu de chumbo
o bolso vazio o coração esfacelado
um desempregado com fome na parada
esperando o ônibus para o subúrbio

fantasias notívagas os preconceitos suspensos
desejos absconsos e sua cumplicidade
classes sociais aproximando-se promíscuas
antes que o dia enquadre as criaturas

Antonio Miranda In "Despertar das Águas", Thesaurus Editora,
Brasília, 2006, pp 47-48.
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REVISTA SAUDADE


ENCONTRA-SE À VENDA O Nº 11 DA " REVISTA DE POESIA SAUDADE" (JUNHO 2009 ).
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O REFERIDO NÚMERO TEM A COLABORAÇÃO DOS SEGUINTES POETAS:
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ALFREDO FERREIRO (Galiza), AMADEU BAPTISTA, ANA LUÍSA AMARAL, ANTÓNIO
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CABRITA, ANTÓNIO CÂNDIDO FRANCO, ANTÓNIO FERRA, ANTÓNIO JOSÉ QUEIRÓS,
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ANTÓNIO SALVADO, AVELINO DE SOUSA, BRUNO BÉU, DANIEL GONÇALVES,
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DANIEL MAIA-PINTO RODRIGUES, EDUARDO BETTENCOURT PINTO, FERNANDO
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BOTTO SEMEDO, FERNANDO DE CASTRO BRANCO, FERNANDO FÁBIO FIORENSE
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FURTADO (Brasil), FERNANDO DA GLÓRIA DIAS (Angola), FERNANDO GRADE,
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FERNANDO PINTO DO AMARAL, FRANCISCO CURATE, GRAÇA MAGALHÃES,
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HENRIQUE MONTEIRO, IACYR ANDERSON FREITAS (Brasil), ILDÁSIO TAVARES (Brasil),
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IOLANDA R. ALDREI (Galiza), ISABEL CRISTINA PIRES, JOÃO RUI DE SOUSA, JOAQUIM
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CARDOSO DIAS, JOEL HENRIQUES, JORGE REIS-SÁ, JOSÉ A. DAMAS, JOSÉ LUÍS DE
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ALMEIDA MONTEIRO, JULIÃO BERNARDES, LUÍS ADRIANO CARLOS, LUÍS FILIPE
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CRISTÓVÃO, LUÍS FILIPE PEREIRA, LUÍS QUINTAIS, MAFALDA CHAMBEL, MARIA DO
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SAMEIRO BARROSO, NICOLAU SAIÃO, NUNO DEMPSTER, PEDRO SENA-LINO, PEDRO
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S. MARTINS, POMPEU MIGUEL MARTINS, RUI CAEIRO, SÉRGIO PEREIRA, TATI
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MANCEBO (Galiza), TIAGO PATRÍCIO, VICTOR OLIVEIRA MATEUS, VÍTOR OLIVEIRA
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JORGE e XOSÉ LOIS GARCÍA (Galiza).
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22/08/09

" L'indomptable n'a pas de mots."


"En Mars - 79 "
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Las de tous ceux qui viennent avec des mots, des mots
mais pas de langage,
je partis pour l'île recouverte de neige.
L'indomptable n'a pas de mots.
Ses pages blanches s'étalent dans tous les sens!
Je tombe sur les traces de pattes d'un cerf dans la neige.
Pas des mots, mais un langage.
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Tomas Transtromer In "Baltiques - Oeuvres complètes 1954 - 2004",
Poésie/Gallimard, Paris, 2004, p 244 (Tradução do sueco por Jacques Outin).
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traduzindo Tomas Transtromer...

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"Em Março de 79"

Cansado de todos os que vêm à mistura com as palavras,
com as palavras não com a linguagem,
parto para uma ilha recoberta de neve.
O indomável não se deixa dizer.
As suas páginas brancas desdobram-se em todos os sentidos!
Descubro as pegadas de um veado inscritas na neve.
Nada de palavras, mas sim uma linguagem.

Tomas Transtromer (tradução do francês por Victor Oliveira Mateus)
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20/08/09

Etty Hillesum

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(de 24/10/1941 a 11/11/1941 - excertos).
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As pessoas não se devem contaminar mutuamente com as sua más disposições.
Esta noite, mais decretos contra os judeus. Consenti a mim mesma ficar deprimida e desassossegada com isso durante meia hora. Antigamente ter-me-ia consolado a ler um romance e deixar o trabalho por fazer. (...) Enquanto o conseguirmos alcançar através da menor abertura, devemos aproveitar. Pode ser que isso o consiga ajudar (ao Mischa) na vida mais tarde. Uma pessoa não deve querer atingir sempre grandes resultados. Mas devemos acreditar nos pequenos.
Há dois dias que só trabalho e não me aprofundo nos estados de espírito (...).
"Estou tão agarrada a esta vida." O que queres dizer com esta "vida"? A vida fácil que tens agora? Se realmente estás agarrada à vida crua, nua e crua, qualquer que seja a sua forma, isso ainda terá de se ver com o passar dos anos. Tens forças suficientes em ti. Também tens isto: "Se uma pessoa leva a vida a rir ou a chorar, é somente uma vida." Porém isto não está só. Está misturado com dinâmica ocidental, de vez em quando sinto-o de modo muito intenso. Nestes dias mais sóbrios de verdadeira autodisciplina, sinto isso muito intensamente: estás mesmo saudável, estás a avançar para ti própria, a chegar à tua própria base (...).
Parece que já se passaram muitas semanas e que experienciei muitíssimas coisas. E no entanto, a um determinado momento uma pessoa reencontra-se às voltas com a mesma questão: a compulsão que tens em ti ou essa ficção ou fantasia, como lhe queiras chamar, de querer possuir uma só pessoa por uma vida inteira, tens de a estilhaçar em mil pedaços. Esse absoluto tem de ser pulverizado dentro de ti. E em seguida não ficar com essa ideia de que a pessoa fica mais pobre com isso, mas justamente mais rica. Bastante mais difícil, mas com mais nuances. Aceitar os pontos altos e baixos nas relações, e encarar isso como positivo e não como entristecedor. O não querer possuir um outro, o que não significa renunciar ao outro. Deixar o outro em total liberdade, interiormente também, sem que contudo tal signifique resignação. Começo agora a identificar a natureza da minha paixão no meu relacionamento com o Max (Knaap?). Era a dúvida, porque sentias que o outro era inalcançável em última instância e isso atiçava-te ainda mais. Mas isso aconteceu provavelmente porque querias alcançar o outro de modo errado. De modo demasiado absoluto. E o absoluto não existe. Que a vida e as relações humanas são infinitamente matizadas, que não há em parte alguma algo absoluto ou objectivamente válido, isso também eu sei, mas este conhecimento deve estar também no sangue, em ti mesma, não só na cabeça, mas deve também ser vivido. E aqui volto sempre a bater na mesma tecla e uma pessoa tem de se exercitar nisto durante toda a vida: que, tal como uma pessoa aceita viver segundo uma visão do mundo, de idêntico modo deve viver o seu sentimento. Provavelmente é essa a única possibilidade de adquirir um sentimento de harmonia.
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Etty Hillesum In "Diário 1941-1943", Assírio & Alvim, Lisboa, 2008, pp 130-132 (Prefácio de José Tolentino Mendonça, Tradução do neerlandês de Maria Leonor Raven-Gomes.
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.(Nota - Etty Hillesum "foi morta" no campo de concentração de Auschwitz em 1943).
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18/08/09

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Azul que em azul te desdobras.
Cerco de baías. Moldura de espuma.
De penhascos afagados pelo vento.
É na linha do fogo que te desenho,
ó insubmissa de vagas e fulgores!
É em ti que me renovo, Cítera,

a dos amores. E por ti diariamente
renasço, ilha que em ilhas
te desdobras, onde me apoio
e urdo a teia que sempre refaço,
com o Cabo de Maleia ao fundo;
lâmina apontada ao meu peito

lasso. Aqui me fico, envolto em
algas e sargaço. Azul que em azul
te desdobras das chaminés das casas
ao dúctil reflexo do horizonte;
percurso onde sempre me busco
e busco do ser sua nítida fonte.

Victor Oliveira Mateus In "A Irresistível Voz de Ionatos", Editora Labirinto,
2009, p 11 (Posfácio de Cláudio Neves e texto da contracapa de Olga Savary).
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16/08/09



           " L' aigle noir "


Un beau jour, ou peut-être une nuit,
Près d'un lac je m'étais endormie,
Quand soudain, semblant crever le ciel,
Et venant de nulle part,
Surgit un aigle noir,

Lentement, les ailes déployées,
Lentement, je le vit tournoyer,
Près de moi, dans bruissement d'ailes,
Comme tombé du ciel,
L'oiseau vint se poser,

Il avait les yeux couleur rubis,
Et des plumes couleur de la nuit,
A son front brillant de mille feux,
L'oiseau roi couronné,
Portait un diamant bleu,

De son bec il a touché ma joue,
Dans ma main il a glissé son cou,
C'est alors que je l'ai reconnu,
Surgissant du passé,
Il m'était revenu,

Dis l'oiseau, ô dis, emmène-moi,
Retournons au pays d'autrefois,
Comme avant, dans mes rêves d'enfant,
Pour cueillir en tremblant,
Des étoiles, des étoiles,

Comme avant, dans mes rêves d'enfant,
Comme avant, sur un nuage blanc,
Comme avant, allumer le soleil,
Etre faiseur de pluie,
Et faire des merveilles,

L'aigle noir dans un bruissement d'ailes,
Prit son vol pour regagner le ciel,

Quatre plumes couleur de la nuit
Une larme ou peut-être un rubis
J'avais froid, il ne me restait rien
L'oiseau m'avait laissée
Seule avec mon chagrin

Un beau jour, ou peut-être une nuit,
Près d'un lac, je m'étais endormie,
Quand soudain, semblant crever le ciel,
Et venant de nulle part,
Surgit un aigle noir,

Un beau jour, une nuit,
Près d'un lac, endormie,
Quand soudain,
Il venait de nulle part,
Il surgit, l'aigle noir ...

Barbara

05/08/09



Toma-me ainda em tuas mãos e
não perguntes nada
nem sequer dês um nome aos gestos que se abrigam
como um fruto uma promessa um murmúrio
nas fogueiras ateadas em junho

juro que vou escolher palavras que não doam
parecidas com as que sempre encontrava
nas camas em que tantas vezes te enterrei
por dentro do meu corpo

toma-me ainda em tuas mãos eu sei que
temos pouco tempo que não queres
inventar novos ardis para um desamor tão velho
mas vais ver
o mundo é apenas isto e para isto
não procures nenhuma filosofia redentora
porque tudo é no fim de contas tão banal

podes por isso começar a refazer a estrada que
te levava ao centro dos meus dias e esperar
que eu chegue com um retrato desfocado nas mãos
na hora certa de abrir para ti as minhas veias


Alice Vieira In " o que dói às aves", Ed. Caminho,
s/c, 2009, p 36.
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04/08/09




"Condomínio Fechado"


Ficou o cedro enorme, disseste, o que guarda
os nossos afectos e as conversas avulsas dos outros:
o lugar de todas as passagens é agora o centro
do vazio que sobe das raízes até ao horizonte
se houvesse horizonte, ao menos um pouco de ar.
O cedro e os segredos antes de corrermos para o forte,
de combinarmos as guerras maninho,
de sabermos que tudo ia ruir, menos o cedro, dizes.
Que adiantaram as nossas vitórias? As derrotas dos outros
deixaram-nos a memória ruidosa de um cedro, o ouvido
disperso pelas folhas e o silêncio magoado a toda à volta.
Combinávamos a vida, o alvoroço da folhagem.
Agora o telefone toca por engano - não mora aqui ninguém
com esse nome, todos moramos num ecrã de televisão
com vista para o mar. Eu só lembro o tufão que te arrancou:
nós torciamos o bibe com mãos nervosas e as mãos
dos homens refaziam os alicerces agasalhando-te
na terra fértil. Cheirava a estrume e nós sabíamos
que a vida voltava - na folhagem luziam os afectos
que limpam o tempo depois da tempestade. Guardião
do templo, para quem guardas as nossas vozes
se nós mesmos perdemos os ouvidos e as mensagens
não chegam até nós? Pelo sim, pelo não
maninho, deixa ligado o telemóvel.

Rosa Alice Branco In "Da Alma e dos Espíritos Animais", Campo das Letras Ed.,
Porto, 2001, pp 37-38.
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03/08/09

"A noite, se existiu, foi para nós um erro"

"Telhados de Lisboa", quadro de Maluda.


"manhã"


É um pequeno milagre, esta claridade.
Os telhados acendem-se como fornalhas,
permanece vermelha uma parte do céu.
A noite, se existiu, foi para nós um erro
de perspectiva, uma ilusão, um ardil de
sombras e estrelas perdidas no escuro.

Agora é de um azul sem mácula, o céu;
a cidade, um corpo branco a levantar-se;
e esta luz - rasa, rosa, crua - já não um
pequeno milagre, mas uma evidência.

José Mário Silva In "Luz Indecisa", Oceanos/LeYa, Alfragide, 2009, p 48
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"Agora vejo a poeira suspensa na luz"


"ich habe genug (bwv 82) "
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Não é uma questão de lógica.
O milagre está muito além
da pauta, a lenta melodia do oboé
desenhando uma arquitectura aérea.
Agora vejo a poeira suspensa na luz,
o apogeu do outono numa cidade
que se recusou a ser minha, as
armas serenas da tristeza. A voz
de Hans Hotter - tão escura, tão
funda, tão resignada - traz-me
ainda uma capitulação feliz.
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José Mário Silva In "Luz Indecisa", Oceanos/LeYa, Alfragide, 2009, p 42.
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