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Marcello Caetano. O Homem que Perdeu a Fé, de Manuela Goucha Soares, "a biografia completa", segundo reza o anúncio da capa, possui o dom de reunir o melhor da reportagem jornalística com o melhor da investigação histórica. Dito de outro modo, reúne a narrativa da existência de um homem político com a descoberta e a inventariação de fontes históricas novas que iluminam de uma outra luz a vida do biografado.
No campo da biografia, todos os cuidados são poucos quanto ao escrúpulo e ao rigor da análise, porque não raro, em Portugal, sobretudo no aspecto político, se confunde biografia com hagiografia, como se constata pela recente publicação de biografias sobre políticos vivos ou sobre figuras carismáticas do Estado Novo. Descansemos, porém, neste caso.
Com efeito, o trabalho de Manuela Goucha Soares não só segue uma rigorosa metodologia jornalística (pesquisa, entrevistas, testemunhos escritos e orais, aplicação da regra do contraditório, deslocação aos lugares, neste caso ao Brasil), como aplica igualmente regras básicas da investigação histórica (a pesquisa em fontes originais e a descoberta de novos documentos, inclusive fotos), como, igualmente, propõe um fio condutor analítico-interpretativo na história colectiva.
Neste último caso, a autora conseguiu uma vincada harmonia entre a vida particular de Marcello Caetano e os acontecimentos públicos que lhe iam moldando o destino político, evidenciando um entrelaçamento muito forte entre a evolução do país e a evolução da vida do biografado. Polémico apenas o subtítulo (O Homem que perdeu a Fé) - a hipostasiação de um facto íntimo da vida do biografado que não explica nem a sua actividade política nem interfere nas suas intervenções públicas.
Que nos dá a ler a autora através da narração da vida de Marcello Caetano? A grande, grande conclusão que se extrai do encadeamento dos factos vivenciais apresentados reside na circunstância, até hoje não suficientemente relevada do ponto de vista histórico, que - primeiro - Marcello Caetano nunca superou o estatuto de um funcionário superior do Estado Novo, nem sempre passivo, mas sempre obediente ao chefe, isto é, a Oliveira Salazar; segundo, quando lhe faltou o chefe, não o soube substituir através de políticas próprias actualizadas, segundo um horizonte político próprio, desbloqueador do nó górdio em que se tornara Portugal, limitando-se a prolongar as do passado ("complexo" do funcionário superior). Quando sucedeu a vacatura de Primeiro-Ministro, Marcello Caetano evidenciou os seus genuínos limites políticos, transpondo para este alto cargo político e administrativo a estrutura mental e as categorias sociais próprias de um funcionário há 40 anos conivente e convivente com o regime, explorando os limites deste, mas evidenciando uma forte incapacidade para o renovar.
Com efeito, como funcionário superior, Caetano encontra-se ao lado de Salazar desde o primeiro minuto do regime do Estado Novo. Este convida-o para Subsecretário de Estado das Corporações e Previdência Social, Marcello Caetano recusa (encontra-se em plena preparação das provas de doutoramento) e Salazar nomeia-o para a Comissão Executiva da Comissão Central da União Nacional com a incumbência de preparar o primeiro congresso desta organização política. Mais concordante ou mais discordante, Marcello Caetano frequenta o pequeno círculo de conselheiros de Salazar durante 30 anos, até ao final da década de 50. As suas discordâncias, porém, nunca são levadas ao limite da ruptura, muito longe disso, revelando - conclui-se após a leitura do livro de Manuela Goucha Soares - "pequenos atritos tácticos e conjunturais mas grandes afinidades estratégicas ao nível da criação e organização corporativa do Estado Novo".
De facto, não foi a política que fez de Marcello Caetano um grande homem, mas os sesu estudos de Direito - este seria, porém, um caminho que daria um outro tipo de biografia (a "biografia intelectual"), que, estatuindo-se apenas como um plano da vida do biografado, Manuela Goucha Soares não seguiu, e muito bem, oferecendo-nos um retrato mais completo.
De facto, como classificar senão de funcionário superior incondicional do regime um jovem político (35 anos) nomeado para fundar e dirigir a Mocidade Portuguesa? Que outro senão um fiel e leal discípulo poderia escrever as cartas ao chefe dadas a conhecer pela autora (pp. 81 - 82)? Que outro senão um funcionário superior poderia ser nomeado Ministro das Colónias, em 1944, em plena II Guerra Mundial, seguindo de imediato em viagem para as colónias de modo a promover o cerrar de fileiras dos territórios ultramarinos em torno da política do Chefe? Que a outro senão a um indefectível exigiria ao chefe mais e melhor no campo social e corporativo contra a "burguesia capitalista" (p.97)? Que outro senão um lealíssimo colaborador poderia ser nomeado, em 1947, presidente da Comissão Executiva da União Nacional, alertando o chefe para a ineficácia da propaganda do Estado Novo, que não arregimentava as "massas populares" (p. 107)? Que outro senão um fidelíssimo poderia ser nomeado Presidente da Câmara Corporativa em 1949?
Face à fidelidade ao regime, haveria, de facto, dissonância crítica com o chefe? Como político, Marcello Caetano é fiel; como intelectual, crítico. Como a autora evidencia, é justamente a crise académica de 1962 que revela a diferença entre o político e o intelectual, levando a um afastamento.
Porém, após a subida ao lugar do Chefe, em 1968, o mito esvazia-se de todo. No essencial, Marcello Caetano, preso a uma educação integralista e incapaz de encontrar verdadeiras alternativas para o bloqueio em que Portugal vivia (Guerra Colonial; existência de uma classe média sem expressão no espaço público; isolamento internacional...), segue a política do seu antecessor, evidenciando a sua real face política - a de um funcionário superior do regime. Com efeito, lendo a biografia de Marcello Caetano por Manuela Goucha Soares rápido se conclui que, dentro de um século, a História não registará o seu nome, "saltando" de Oliveira Salazar directamente para a revolução do 25 de Abril de 1974, como a História não regista (senão por académicos e eruditos) o nome do ministro sucessor de João Franco, entre 1908 e 1910, "saltando" do nome deste para a implementação da I República, em 5 de Outubro de 1910.
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(Manuela Goucha Soares, Marcello Caetano. O Homem que perdeu a Fé, A Esfera dos Livros, 293pp, 30 euros)
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Miguel Real In "Jornal de Letras" 1014, Agosto, 2009.
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