20/08/09

Etty Hillesum

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(de 24/10/1941 a 11/11/1941 - excertos).
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As pessoas não se devem contaminar mutuamente com as sua más disposições.
Esta noite, mais decretos contra os judeus. Consenti a mim mesma ficar deprimida e desassossegada com isso durante meia hora. Antigamente ter-me-ia consolado a ler um romance e deixar o trabalho por fazer. (...) Enquanto o conseguirmos alcançar através da menor abertura, devemos aproveitar. Pode ser que isso o consiga ajudar (ao Mischa) na vida mais tarde. Uma pessoa não deve querer atingir sempre grandes resultados. Mas devemos acreditar nos pequenos.
Há dois dias que só trabalho e não me aprofundo nos estados de espírito (...).
"Estou tão agarrada a esta vida." O que queres dizer com esta "vida"? A vida fácil que tens agora? Se realmente estás agarrada à vida crua, nua e crua, qualquer que seja a sua forma, isso ainda terá de se ver com o passar dos anos. Tens forças suficientes em ti. Também tens isto: "Se uma pessoa leva a vida a rir ou a chorar, é somente uma vida." Porém isto não está só. Está misturado com dinâmica ocidental, de vez em quando sinto-o de modo muito intenso. Nestes dias mais sóbrios de verdadeira autodisciplina, sinto isso muito intensamente: estás mesmo saudável, estás a avançar para ti própria, a chegar à tua própria base (...).
Parece que já se passaram muitas semanas e que experienciei muitíssimas coisas. E no entanto, a um determinado momento uma pessoa reencontra-se às voltas com a mesma questão: a compulsão que tens em ti ou essa ficção ou fantasia, como lhe queiras chamar, de querer possuir uma só pessoa por uma vida inteira, tens de a estilhaçar em mil pedaços. Esse absoluto tem de ser pulverizado dentro de ti. E em seguida não ficar com essa ideia de que a pessoa fica mais pobre com isso, mas justamente mais rica. Bastante mais difícil, mas com mais nuances. Aceitar os pontos altos e baixos nas relações, e encarar isso como positivo e não como entristecedor. O não querer possuir um outro, o que não significa renunciar ao outro. Deixar o outro em total liberdade, interiormente também, sem que contudo tal signifique resignação. Começo agora a identificar a natureza da minha paixão no meu relacionamento com o Max (Knaap?). Era a dúvida, porque sentias que o outro era inalcançável em última instância e isso atiçava-te ainda mais. Mas isso aconteceu provavelmente porque querias alcançar o outro de modo errado. De modo demasiado absoluto. E o absoluto não existe. Que a vida e as relações humanas são infinitamente matizadas, que não há em parte alguma algo absoluto ou objectivamente válido, isso também eu sei, mas este conhecimento deve estar também no sangue, em ti mesma, não só na cabeça, mas deve também ser vivido. E aqui volto sempre a bater na mesma tecla e uma pessoa tem de se exercitar nisto durante toda a vida: que, tal como uma pessoa aceita viver segundo uma visão do mundo, de idêntico modo deve viver o seu sentimento. Provavelmente é essa a única possibilidade de adquirir um sentimento de harmonia.
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Etty Hillesum In "Diário 1941-1943", Assírio & Alvim, Lisboa, 2008, pp 130-132 (Prefácio de José Tolentino Mendonça, Tradução do neerlandês de Maria Leonor Raven-Gomes.
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.(Nota - Etty Hillesum "foi morta" no campo de concentração de Auschwitz em 1943).
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