" amigos de longa data do dia que não acaba"
quero os amigos que tenho na cabeça
os que tenho em mente nunca conhecer pessoalmente
e não vão ter defeitos os meus amigos de nunca
mais
os meus amigos são Simão que vende seguros e por isso
usa óculos só para os poder partir
são Jaime que tem um snack-bar que dá prejuízo
são Abu que é indiano e que está na minha cabeça só
para provar que sou multicultural e tirando isso o
Abu cala-se o Abu canha-se
e são eles aqueles que eu gostava de levar para a cova
para os apresentar à Nossa Senhora
e são eles aqueles com quem jogo cartas sem me
preocupar com a morada certa
e desabafo com eles como quem tem falta de ar
e converso com eles nos intervalos das discussões
que o resto do tempo fica para discutir quem é mais
meu amigo
amigo meu mais
meu mais amigo
e fazem concursos para ver quem me lava melhor os
pés
quem me coça melhor as costas
quem me dá o abraço mais apertado e sexual sem
chegar ao ponto do desconforto de ter vontade de o
beijar
e tenho tantas saudades deles
inventei as saudades que lhes tinha e pedi que chorassem
muito
e eles choraram o dobro de muito que é para cima de
um lago onde vamos nadar os quatro
o choro deles quando se juntam é do tamanho
da água de que precisa o veleiro de onde partimos à
aventura
e ao partir a aventura dividi-a pelos três
e agora estão ciumentos porque não dá conta certa
e disputam a amizade como um jovem lobo que aprende
a caçar
e eu dou-me todo por não ter a quem mais dar
e converso-lhes as palavras todas porque eles não
existem
e digo-me os elogios todos porque eles não me podem
ver
e canto-me as canções mais doces porque voz não
sabeis
não sabes
não estás cá
não estão cá
antes estivessem
se cá estivessem era melhor
não estando tenho de me contentar com os homens e
mulheres que estão ao meu lado e que eu não inventei
e cada vez tenho mais saudades deles
procuro alguém parecido mas não encontro
e quando encontro não gosto porque me apaixono pelas
pessoas que são o contrário do que a minha imaginação
prefere
e o Jaime o Simão e o Abu levaram a mal e foram
passar férias para acabeça de outra pessoa e nem um
recado deixaram
e se calhar não voltam
e se calhar não quero
e a cabeça já não tem inquilinos
e os que há estão à minha volta
mesmo à minha volta
mesmo de verdade
com caras que não me são familiares e personalidades
defeituosas que eu julgo como quem beija
a cabeça levo-a leve mas o coração bate mais forte
mais pesado
pudera tem gente lá dentro
João Negreiros In "Luto Lento", Ed. Projecto Literatura em Movimento,
(http://www.oletras.com/), s/c, 2008, pp 57 - 59.
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