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A este propósito, é bom lembrar que cerca de um terço da população portuguesa continua a viver no exterior. Cinco milhões de emigrantes encontram-se dispersos pelos Estados Unidos, pela França e pelo Brasil, por muitos e vários outros destinos, em confronto com os dez milhões e trezentos mil que vivem em território nacional, o que significa que Portugal continua a ser um país de partida. Aliás, a emigração de portugueses para a Europa mesmo nos últimos tempos não abrandou de ritmo. De momento, é mesmo o país da União Europeia que apresenta a percentagem mais elevada de cidadãos em idade activa a residir em outros Estados-membros. Isto é, como desde há muito, continua a existir um vasto país fora do país, e os números relativos a essa emigração continuada, esmagadoramente de natureza económica, não param de aumentar.
Mas se todos esses dados só confirmam realidades que vêm de trás, eles inscrevem-se agora numa constante bem mais alargada, integrada na mobilidade global que faz mover as populações em torno da Terra em direcção a determinados destinos. Quanto ao que nos diz respeito, o que há de novo, precisamente, é que Portugal tenha passado, nas últimas décadas, a ser cada vez mais um país de destino, e que se aproxime de meio milhão o número de estrangeiros a trabalharem e a residirem entre nós. (...) Os últimos números oficiais dão conta de quase meio milhão de estrangeiros a viverem legalmente em Portugal, sem contar com os clandestinos. À semelhança de outros países europeus, o maior número de imigrantes provém dos antigos espaços coloniais a que se juntam imigrantes oriundos das antigas repúblicas soviéticas - Rússia, Ucrânia, Roménia, Moldávia. Actualmente, pode dizer-se que cinco, em cada cem cidadãos deste país, são estrangeiros, e mesmo tendo em conta oscilações sazonais, o número tende a aumentar. Espera-se mesmo que o equilíbrio demográfico venha a ser alcançado, num futuro próximo, a partir das faixas da imigração residente. O que quer dizer que, à semelhança de outros países da Europa, num futuro imediato, Portugal terá um desafio importante pela sua frente, no qual já inclui uma bela moeda de troca.
É que neste campo de permuta, feito de partida e chegada, deve-se ter em conta que rara será a família portuguesa que não teve no seu passado a experiência do desconhecido e da errância. A força do seu trabalho e da sua energia espalhou-se por toda a parte. O português contactou com todos, à volta do mundo, conhece de tudo um pouco. Mas é a primeira vez, nos tempos modernos, que outras diásporas se cruzam no seu próprio espaço territorial, estando em vias de se desenhar um novo rosto para o futuro.
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O futuro de um país lê-se no rosto dos seus habitantes, e em trinta anos o rosto da população mudou. O vocabulário também.`É verdade que os conflitos aumentaram e a instabilidade se instalou em zonas que não era suposto, e surgiram tensões sociais que nos eram desconhecidas, crispações étnicas que entretanto se cruzaram com outras de vária natureza, à medida que a sociedade se foi tornando complexa e fragmentada. Mas se esta estrada tem oferecido vários caminhos divergentes, por vezes eles cruzam-se sobre o mesmo tapete de asfalto e alguns deles conduzem a locais inesperados.
Falemos desses lugares, alguns deles de natureza simbólica, por exemplo. É o caso da palavra "raça", que praticamente desapareceu do uso quotidiano para dar lugar a "etnia", um termo que sublinha a inscrição da pessoa numa cultura que lhe é própria, abrindo caminho para uma ligação a um "lugar" e uma "história", mais do que a uma História e uma Geografia.(...) e abre espaço, no plano dos conceitos, para aquilo que é hoje comum ser defendido pelos grupos que se batem pelo reconhecimento da igualdade biológica, em face da Ciência. E provenientes desse campo, até agora, só têm chegado notícias de que nada distingue os homens segundo as raças. As distinções, a nível biológico, estabelecam-se homem a homem, e as mais relevantes entram por outras portas e baseiam-se noutros critérios. (...) "O genoma humano não tem raça" - foi uma frase emblemática, proclamada a 13 de Fevereiro de 2001, e com a qual se baptizou o início deste século, que se pretende sem preconceito. Mas nem todas as alterações provêm do campo dos novos conceitos. Muitas delas resultam das circunstâncias nuas, e por vezes cruas, da pura factualidade.(...)
É assim que, entre nós, a pressão crescente dos números também explica a alteração positiva que se tem feito sentir neste domínio. Ainda há trinta anos, uma criança estrangeira que chegasse a uma escola portuguesa constituia um caso isolado. Hoje, há escolas que registam mais de trinta etnias, e turmas onde estudam em conjunto crianças oriundas de dez países diferentes, desde o Paquistão à Argentina, da Roménia à China.
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Lídia Jorge In "Contrato Sentimental", Sextante Editora, Lisboa, 2009, pp 28 - 31.
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