.
em meio à perda
restam os totens
da memória
amnésia amnésia
sussurra cada centímetro
de cicatriz
esclerose esclerose
grita cada miligrama
de epiderme
o processo
cessa-se por vontade
do sujeito ao
acaso à minguante
atenção todo fim
é arbitrário e estas
instâncias estão feitas
como foram feitas
Ricardo Domeneck in "a cadela sem Logos", Ed. 7Letras e Cosacnaify,
Rio de Janeiro e São Paulo, 2007, p 88.
.
29/04/10
28/04/10
.
E de novo a sensação do mole e indefinido
Vago rumor que envolve as coisas e a solidão nocturna
Ecos longínquos trazem-me a distância
Algo agita o vento e levanta a areia
O deserto é mais vasto e o mar
É proa erguida do navio austero
Em que navega há séculos a sombra - e a miragem
Amélia Pais
(Nota: poema postado por gentileza da autora.)
.
E de novo a sensação do mole e indefinido
Vago rumor que envolve as coisas e a solidão nocturna
Ecos longínquos trazem-me a distância
Algo agita o vento e levanta a areia
O deserto é mais vasto e o mar
É proa erguida do navio austero
Em que navega há séculos a sombra - e a miragem
Amélia Pais
(Nota: poema postado por gentileza da autora.)
.
27/04/10
26/04/10
.
" Desabitada presença "
.
Na foto ela está sorridente. Ar inocente,
conseguido. Ele também, triunfante e
pose a condizer, embora presa de presa,
mas sem o saber. Outros iguais nas mesas
vizinhas - esperam a hora para descer
aos bares. Pelo tamanho e pela feiura
reconheço o local - a Piazza Vittorio. Sempre
a detestei! Reconheço até a esplanada,
que constantemente evitava quando ia para aqueles
lados. Na foto lá estão os toldos branco-
-sujo a cobrir as mesas, as cervejas, os sorrisos.
A um traseunte foi-lhe roubado o espanto,
fixado naquele pedaço de papel sem brilho.
Debruço-me para dentro da foto, mas não
me vejo. Contudo, tenho a certeza que estou
ali - certeza inquestionável, sem dissimulação
nem álibi. Talvez esteja no interior de um carro,
à porta do café, na inquietação de um qualquer
pensamento. Mas não, não me vejo! No entanto
- e repito - tenho a certeza que estou naquela
foto, que reproduz um encontro a que não fui.
.
Victor Oliveira Mateus in "Regresso", Editora Labirinto, Fafe, 2010, p 15.
" Desabitada presença "
.
Na foto ela está sorridente. Ar inocente,
conseguido. Ele também, triunfante e
pose a condizer, embora presa de presa,
mas sem o saber. Outros iguais nas mesas
vizinhas - esperam a hora para descer
aos bares. Pelo tamanho e pela feiura
reconheço o local - a Piazza Vittorio. Sempre
a detestei! Reconheço até a esplanada,
que constantemente evitava quando ia para aqueles
lados. Na foto lá estão os toldos branco-
-sujo a cobrir as mesas, as cervejas, os sorrisos.
A um traseunte foi-lhe roubado o espanto,
fixado naquele pedaço de papel sem brilho.
Debruço-me para dentro da foto, mas não
me vejo. Contudo, tenho a certeza que estou
ali - certeza inquestionável, sem dissimulação
nem álibi. Talvez esteja no interior de um carro,
à porta do café, na inquietação de um qualquer
pensamento. Mas não, não me vejo! No entanto
- e repito - tenho a certeza que estou naquela
foto, que reproduz um encontro a que não fui.
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Victor Oliveira Mateus in "Regresso", Editora Labirinto, Fafe, 2010, p 15.
25/04/10
Joseph Ratzinger, agora Papa Bento XVI, e eu éramos os mais jovens teólogos no Concílio Vaticano II, entre 1962 e 1965. Agora somos os mais velhos, e os únicos que continuam em plena actividade. Sempre entendi o meu trabalho teológico como sendo um serviço à Igreja Católica Romana. Por esta razão, por ocasião do quinto aniversário da eleição do Papa Bento XVI, faço-lhe este apelo (...)motivado pela minha profunda preocupação acerca da nossa Igreja, que se encontra na pior crise de credibilidade desde a Reforma.(...) a esperança de que o meu antigo colega da Universidade de Tubingen poderia encontrar o seu caminho e promover uma contínua renovação da Igreja e uma aproximação ecuménica dentro do espírito do ConcílioVaticano II.
Infelizmente, as minhas esperanças(...)não foram cumpridas(...) quando se trata de enfrentar os grandes desafios do nosso tempo, o seu pontificado desperdiçou mais oportunidades do que as aproveitou: - Perdeu oportunidade de aproximação às Igrejas protestantes. Em vez disso, tem-lhes negado o estatuto de Igrejas no verdadeiro sentido da palavras (...)- Perdeu a oportunidade de uma reconciliação duradoura com os judeus. Em vez disso, o Papa reintroduziu na liturgia uma oração pré-conciliar pela iluminação dos judeus, recebeu de novo em comunhão com a Igreja bispos notoriamente anti-semitas e cismáticos, e está activamente a promover a beatificação do Papa Pio XII, que tem sido acusado de não ter oferecido suficiente protecção aos judeus na Alemanha nazi.(...)- Perdeu a oportunidade de dialogar com os muçulmanos numa atmosfera de respeito mútuo.(...)- Perdeu a oportunidade de reconciliação com os povos indígenas colonizados da América Latina(...)- Perdeu a oportunidade de ajudar o povo africano, não permitindo o controlo da natalidade para combater o excesso de população, nem os perservativos para combater a propagação da sida.- Perdeu a oportunidade de fazer as pazes com a ciência moderna, não reconhecendo claramente a teoria da evolução, nem aceitando as investigações de células estaminais. Perdeu a oportunidade de fazer do espírito do Concílio Vaticano II a bússola para toda a Igreja Católica.
Este último ponto, respeitáveis bispos, é o mais importante de todos. Vezes sem conta, este Papa acrescentou qualificações aos textos conciliares e interpretou-os de forma contrária ao espírito dos pais da assembleia. Vezes sem conta, tomou expressamente posições contra o Concílio Ecuménico, que, de acordo com a lei canónica, representa a mais alta autoridade na Igreja Católica: - Recebeu de regresso à Igreja, sem quaisquer condições, os bispos da tradicionalista Sociedade PioX (---)- Promove por todos os meios a medieval massa tridentina e ocasionalmente celebra a eucaristia em latim de costas para a congregação.- Recusa colocar em prática a aproximação à Igreja Anglicana.(...)- Tem activamente reforçado as correntes anticonciliares na Igreja, nomeando elementos reaccionários para lugares-chave na Cúria (...) e nomeando bispos reaccionários em todo o mundo.
O papa Bento XVI parece estar cada vez mais afastado da grande maioria da Igreja(...) Na sua política anticonciliar, o papa recebe o apoio total da Cúria Romana. A Cúria faz todos os esforços para rebater as críticas ao episcopado e à Igreja como um todo e para desacreditar os críticos (...) as forças reaccionárias em Roma têm tentado mostrar-se perante nós como uma Igreja forte chefiada por um "vigário de Cristo" absolutista que junta apenas nas suas mãos os poderes legislativo, executivo e judicial da Igreja. Mas a política de Bento XVI falhou.(...) Isto é especialmente verdade no tocante a matérias de moral sexual. Até os encontros papais com a juventude, aos quais vão especialmente os grupos conservadores carismáticos, não têm conseguido parar a contínua perda daqueles que abandonam a Igreja(...)E agora, para além de todas estas crises, chega um escândalo de bradar aos céus - a revelação do abuso por parte de clérigos de milhares de crianças e adolescentes, primeiro nos Estados Unidos, depois na Irlanda, e agora na Alemanha e noutros países. E para piorar a situação, a maneira como estes casos têm sido tratados têm levado a uma crise de liderança sem precedentes e a um colapso na confiança na liderança da Igreja.
Não se pode negar o facto de que o esquema a nível mundial de cobertura de casos de crimes sexuais cometidos por clérigos foi idealizado pela Congregação para a Doutrina da Fé sob a direcção do cardeal Ratzinger (1981-2005). Durante o reinado do Papa João Paulo II, essa congregação já tinha tomado conta de todos esses casos, debaixo de juramento do mais estrito silêncio.(...)quero somente deixar à vossa consideração seis propostas(...) Não vos mantenhais silenciosos.(...)Defini reformas.(...)Aji de forma colegial(...) Mesmo em questões litúrgicas, o papa reina como um autocrata acima de e contra os bispos. Não se importa de os ter à sua volta, desde que não sejam mais do que figurantes(...) Obediência incondicional é devida apenas a Deus (...)Trabalhai em prol de soluções regionais (...)Pedi um concílio. É perfeitamente claro que a Cúria Romana, temendo limitações ao seu poder, fará tudo o que estiver ao seu alcance para eviar que um concílio se reúna nas presentes condições.(...)Com a Igreja em profunda crise, este é o meu apelo a vós, veneráveis bispos. Ponde a funcionar a autoridade episcopal que foi reafirmada pelo Concílio Vaticano II.
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Hans Kung in "Carta Aberta aos bispos de todo o mundo" in Jornal Público de 24 de Abril de 2010, p 4.
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Nota - Muitos dos livros de Hans Kung não se encontram traduzidos para português (variante de Portugal), no entanto para quem goste de investigar estes assuntos numa perspectiva de seriedade intelectual, e apenas para esses ( pois trabalhar em torno do Ateísmo não me torna ateu, nem documentar-me acerca de correntes religiosas me tranforma em crente...), talvez possa entrar na obra deste autor por: "Projecto para uma Ética Mundial", Hans Kung, Instituto Piaget, Lisboa, 1996. Em castelhano será também de ler: "El Cristianismo - Esencia e Historia", Hans Kung, Editorial Trotta, Madrid, 1997.
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24/04/10
AVISO - o texto que se segue é um poema e apenas como tal deve ser lido e ouvido. Contudo,
para aqueles que não gostam, em arte, de palavras vulgarmente designadas por "palavrões", poderão sempre evitar tal audição ou leitura.
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para aqueles que não gostam, em arte, de palavras vulgarmente designadas por "palavrões", poderão sempre evitar tal audição ou leitura.
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Nota- O poema que se segue foi o primeiro que encontrei do João Negreiros. Quando cheguei a casa e o mostrei à C. ficámos ambos fascinados com o texto. Mais tarde, na primeira conversa que tive - via telemóvel - com o João disse-lhe exactamente isso e ele chamou-me a atenção para o facto da sua escrita englobar outros registos. Confirmei . O interessante disto tudo
é que, dias depois, um casal de grandes escritores desta terra oferecia-me o "luto lento": eles sabiam que eu iria gostar! Eles sabem que eu não "gosto apenas"dos poemas que se integram na lírica amorosa. Outro pormenor: o estatuto do palavrão nesta escrita! Apesar deste blogue não ser um espaço de retórica nem dos meus malabarismos conceptuais, talvez não seja errado um dia voltar a falar desse assunto, embora não saiba a quem possa interessar o que eu penso acerca da relação arte (literatura, cinema, etc.)/palavrão...
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" ode ao filho da puta"
e querem estes filhos da puta que a gente lhes dê ouvidos quando nem temos o que comer
porque os filhos da puta se alambazaram antes de nós e deixaram-nos no toalha uma côdea
porque disseram que não era bom que tivéssemos miolos
" ode ao filho da puta"
e querem estes filhos da puta que a gente lhes dê ouvidos quando nem temos o que comer
porque os filhos da puta se alambazaram antes de nós e deixaram-nos no toalha uma côdea
porque disseram que não era bom que tivéssemos miolos
e querem estes filhos da puta que confiemos neles e na merda dos fatinhos de pronto a vestir que lhes escolheu a amante ou a mulher enquanto ele a encornava
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e querem estes filhos da puta que a gente goste deles quando eles não gostam de nós
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os cabrões dizem bem de tudo e mal de todos e vão aos urinóis olhar para a cobra cega uns dos outros
só para ver qual é o que tem mais peçonha
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o Senhor Ministro leva aí um belo instrumento
ó Sousa isto não é nada mas já agora sacuda-ma para não me pingar para o fato
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e depois fazem um número nas entrevistas do canal cultural em que mostram as fotografias que tiraram na praia numa ilha qualquer miserável do Pacífico
e querem que a gente acredite que eles são humanos só porque andam de fato de banho
grandes filhos da puta
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eu queria era que um ciclone desse lá um saltinho e os levasse a todos para o inferno
se bem que o diabo não tem culpa nenhuma porque só está a fazer trabalho dele e não merece ter que levar com os vossos discursos
.
ai os discursos
os filhos da puta dos discursos
os discursos dos filhos da puta a dizer que é importante que os grunhos que não sabem ler venham da terrinha para a guerrinha combater lá uns gajos que nem falam português
que um gajo para os matar tem que aprender a ler
e depois ainda tem que aprender a falar estrangeiro
e não é que os filhos da puta mandam a malta para lá sem qualquer curso de línguas
.
e depois ainda vão ao enterro abraçar os orfãozinhos e comer-lhes os croquetes
e quando a viúva chega a casa e liga a televisão é só paz por uns tempos mas depois
quando o coveiro começa a ganhar fôlego
trata de comprar mais uma carrada de F17 que se vendem à grosa
mas para os países de terceiro mundo até pode ser avulso
e lá vão mais uns provincianos da terra p'rá guerra
e morrem sem saber ler nem escrever
e matam sem saber ler nem escrever
e depois quem fica cá sente aquilo tudo pelos noticiários como se fosse connosco
e quem não tem TV sente pelos GNR com a metralhadora à porta das embaixadas
que para nós é um brasileiro a dar toques
mas para os outros é um consolo ou um consulado
.
e os filhos da puta nem sequer apanham trânsito
nem cheiram o sovaco do autocarro porque têm batedores que lhes fazem as claras em castelo p'ra que cheguem depressa ao palácio e se alambazem com as natas
e depois são os nossos representantes
esses filhos da puta
que falam como quem se peida
que gritam como quem caga mandam nesta merda toda
.
e a liberdade e o genocídio são irmãos gémeos que vestem de igual e que lambem o mesmo chupa-chupa que é uma terra miserável a nadar em ouro negro
e a gente olha para eles e diz
aquele animal não pode ser o nosso presidente mas é o filho da puta é
aquele animal não pode ser o nosso ministro mas é o filho da puta é
.
e é vê-los todos a rir que quase lhes saem os dentes fora quando o espectáculo acaba
a gozar com o povinho que anda com eles às costas
e cada vez nos dói mais mas às vezes parece que não
que quando dizemos que nos dói muito os que ainda carregam mais que nós dizem que nem é tanto assim que agora andamos menos corcundas mas só me sinto de gatas
.
e os meus irmãos dizem ser psicológico que antigamente é que era
que isto agora não é nada
dantes é que eles eram mesmo filhos da puta
agora disfarçam bem
e é tudo tão claro
estamos todos tão bem informados que já não há lugar para um bufo como eu
um bufo que denuncia os amigos que não prestam
um bufo que aponta o dedo a quem se deixa matar
um bufo que puxa a língua a quem acha que é melhor estar calado
e eu quero sê-lo para que esses filhos da puta não levem sempre a melhor
assim vão levar quase sempre a melhor
e vão beijar menos órfãos e violar menos viúvas
e na tristeza deles encontro a minha razão de viver
é no espaço que vai da relativa felicidade até à felicidade absoluta de um filho da puta que eu me encontro
.
e vou ficar lá para sempre a fazer barulho como o sino que lembra ao operário que a hora de almoço chegou
e que pode comer
mesmo que não tenha fome
mesmo que não saiba mastigar
mesmo que a marmita que trouxe de casa há séculos atrás lhe pareça uma miragem
mesmo que já não se recorde de quem é
de onde vem
e quanto sofreram seus pais na tortura
na prisão
na pobreza
mesmo que já não tenha ideia dos tempos que já passaram
das pessoas que já não estão
e das almas sem corpo que nos pedem todos os dias baixinho para resistir
resistir mesmo sem forças
sem futuro
e sem lembrar o passado
.
.
João Negreiros in "luto lento", Papiro Editora, Porto, Editora, 2008, pp 71 - 75.
.
23/04/10
... não só se antecipou no dia/ como não veio de vermelho...
.
Hoje a cor é o roxo
de mosto
sobre tudo passando repassando em piedosa impiedosa velatura
Das grades dos portões feitas de chuva e vento
goteja mudo um sarro de desgosto
anónimo ulcerante
e ecoante em sobressaltos glaucos de roer
as unhas e tudo o que acontece e não devia talvez acontecer
uma palavra um gesto um compromisso
um sarro
que não deixa esquecer ou então recomeçar retroceder
a uma paz anterior que nunca houve mas ao menos se imagina
e só imaginá-la um minuto muda o roxo em rosa neutro inofensivo
um sarro
que não deixa apagar lavar raspar este hoje-roxo que tudo mancha e contamina
um sarro-chaga de raiva e sofrimento
de
que
pinga
um esverdeado pus que a vida toda mina de obsessivo
remorso que supura
e não é bem isso
Mário Dionísio in "poesia incompleta", Publicações Europa-América,
Mem Martins, 2ª edição, pp 343 - 344.
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Hoje a cor é o roxo
de mosto
sobre tudo passando repassando em piedosa impiedosa velatura
Das grades dos portões feitas de chuva e vento
goteja mudo um sarro de desgosto
anónimo ulcerante
e ecoante em sobressaltos glaucos de roer
as unhas e tudo o que acontece e não devia talvez acontecer
uma palavra um gesto um compromisso
um sarro
que não deixa esquecer ou então recomeçar retroceder
a uma paz anterior que nunca houve mas ao menos se imagina
e só imaginá-la um minuto muda o roxo em rosa neutro inofensivo
um sarro
que não deixa apagar lavar raspar este hoje-roxo que tudo mancha e contamina
um sarro-chaga de raiva e sofrimento
de
que
pinga
um esverdeado pus que a vida toda mina de obsessivo
remorso que supura
e não é bem isso
Mário Dionísio in "poesia incompleta", Publicações Europa-América,
Mem Martins, 2ª edição, pp 343 - 344.
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21/04/10
"Voltei para curar feridas antigas e levar outras."
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A noite tombou e desta vez morcegos reais voam de palmeira para palmeira, vultos grandes, pesados têm mais sorte que as crianças da praia. De noite há sempre o que comer.
É de madrugada, fui ver e sentir o Mar. Mais vazio mas não tanto como quando era criança e podia andar até ao fundo onde não me era permitido quando o Mar enchia. Senti o macio e o escorregar do limo preso às rochas com todos os tons de verde até um que chega ao dourado, uma beleza de tapete natural que num movimento contínuo percorre as pequenas poças de água onde os peixes pequenos esperam a volta do Mar. Continuei na praia e quase ao chegar à curva da baía, vejo a casa onde brinquei...
- de lá corria para mergulhar-
... na mesma curva um amigo vinha com seu andar sem pressa. A mesma pressa que nos fez reencontrar num aperto de mão firme e largo.
- A senhora voltou, disse.
Voltei para curar feridas antigas e levar outras.
Voltei para vos ver e convosco ajudar o meu estar...
Um olhar terno mas já a sair da adolescência veio do rosto dele e percorreu o meu dedo indicando-lhe a casa onde brinquei em pequena (...).
Fizemos o resto da praia juntos até chegar a grupos grandes de homens que puxavam redes. Não me lembro nunca de ter ouvido ou visto esta forma de pescar no Wimbe. Os meus pés começaram a ser magoados por milhares de conchas partidas em pequenos pedaços.
Perguntei:
Há muito pescam assim?
Há algum tempo, senhora. É preciso trazer peixe.
O silêncio entre nós dois mergulhou no cascalho, sabendo que esta maneira de pescar não pertence ali.
Quem seria o viajante que a trouxe e sem pensar varre o fundo de um mar que não conhece?
(...)- tenho por hábito nunca apanhar conchas de nenhum Mar, se as apanho volto a deixar, para as ter basta cerrá-las na palma da mão, fechar os olhos, sorrir e voltar a pousar -
(...) Mal abro a porta, palavras em grito Macua vêm da praia apontando para mim e mostrando a outros homens que partiam para a pesca, de quem eu era. Mais uma vez a terra e a gente me mostrou que ali pertenço e malgrado os anos passados, nem nada nem ninguém me pode tirar esta identidade.
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Inez Andrade Paes in " O Mar Que Toca Em Ti", ed. autor, s/c, 2006, pp 9 - 17.
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20/04/10
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"L'Eau"
Par la grâce de l'eau
Nous sommes nés à la terre
De sources en ruisseaux
De rivières en fleuves
De cascades en océans
Surpeuplant tous les sols
Au risque de naufrages
Issus de l'eau remuante
Nous subissons mêmes vagues
Mêmes houles mêmes remous
Mêmes écumes mêmes déluges
Jusqu'à mortelle sécheresse
En désertant le temps
Bâtis d'eau d'étoiles
Et d'une étrange chimie
Voués aux mutations
Fluides ou marécageuses
Voguant entre des berges
Ou bien à la dérive
Nous sommes les éphémères
Nous sommes les permanents.
Andrée Chedid in " Rythmes", Éditions Gallimard,
Paris, 2003, pp 110 - 111.
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"L'Eau"
Par la grâce de l'eau
Nous sommes nés à la terre
De sources en ruisseaux
De rivières en fleuves
De cascades en océans
Surpeuplant tous les sols
Au risque de naufrages
Issus de l'eau remuante
Nous subissons mêmes vagues
Mêmes houles mêmes remous
Mêmes écumes mêmes déluges
Jusqu'à mortelle sécheresse
En désertant le temps
Bâtis d'eau d'étoiles
Et d'une étrange chimie
Voués aux mutations
Fluides ou marécageuses
Voguant entre des berges
Ou bien à la dérive
Nous sommes les éphémères
Nous sommes les permanents.
Andrée Chedid in " Rythmes", Éditions Gallimard,
Paris, 2003, pp 110 - 111.
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14/04/10
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(Nota- Maria Eglantina, mulher de Fortunato Godinho da Silveira, era também chamada por outros nomes pela população das ilhas: Nha Chumpa, Nha Triste, Nha Santa...)
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Ao mesmo tempo que falava, Floriana estendia-se ao comprido sobre a cama, ficando deitada ao lado de Nha Chumpa. Ao recostar-se, as saias subiram permitindo que as pernas de Floriana tocassem ao de leve as da senhora. O coração da dona da casa iniciou uma batucada que Floriana podia ouvir e ver no decote da blusa rendada, onde o peito de Maria Eglantina se movia agitado. O momento há tanto tempo desejado por ambas aproximava-se do início. Floriana tomou e beijou docemente as mãos da sua Nha Chumpa, depois, inclinando-se sobre a face afogueada de Maria Eglantina, beijou com ternura as pálpebras cerradas. A senhora, de olhos fechados e com a alma a transbordar de ternura, procurou a boca de Floriana, beijando suavemente os lábios macios e carnudos.(...) Uma vacilante vertigem ganhara espessura e flutuava no espaço, conferindo mais brilho ao olhar das duas que transbordava de amor. Floriana amou no corpo de Nha Chumpa o que ele emanava e não a aparência física. Maria Eglantina, nas estranhas visões inspiradas pela paixão amorosa, vira em Floriana um anjo que lhe lia o rosto, as pontas dos seios e as imagens que a sua mente produzia.(...) Quando o coração acalmou e a razão se substitui à ternura e ao desejo, Nha Chumpa, atordoada, incrédula pelo local para onde fora transportada por momentos pelos beijos e mãos de Floriana, pediu para ficar sozinha.
- Afasta-te, quero ficar só!- implorou com voz firme. Floriana vestiu-se, dirigiu-se para a porta. Antes de a fechar atrás de si, olhou Nha Chumpa nos olhos e com suavidade, arrastando a voz, sussurrou.
- N' creu tcheu!
Nha Chumpa levantou-se da cama, vestiu sobre o corpo nu um roupão de algodão. Aproximou-se da janela (...). Já sozinha no quarto, culpabilizada por se ter entregue nos braços de uma mulher, proclamou, bendito e louvado seja o Senhor! Depois, mais recomposta e apaziguada, sentou-se num cadeirão (...). Uma enorme nostalgia apoderou-se do coração, levando-a a murmurar consigo propria.
- Nem o meu tão amado tenente me transportou com tanto carinho ao lugar onde reside o prazer. Será certamente arriscado transformar uma criada numa amiga, mas mais grave e perigoso é tranformá-la em amante - concluiu.
(...) Nessa mesma noite, Floriana não cumpriu a habitual tarefa de servir o jantar. Fortunato não reparou que foi a empertigada Joaquina a levantar os pratos, pôr e tirar da mesa terrina e travessas, despejar vinho e água nos copos dos patrões. A hora do jantar era sempre triste e silenciosa. Fortunato raramente falava com a mulher. Maria Eglantina respeitava o silêncio do marido, que só era interrompido pelo tilintar de copos e talheres.
No momento em que Maria Eglantina se preparava para deitar, o marido irrompeu pelo quarto. Sem bater à porta, gritou.
- Tens de me servir, o rapaz qualquer dia já rói ossos, precisa de um irmão! Maria Eglantina foi atirada para cima da cama, despida e possuída (...). Quando o tormento terminou, Nha Chumpa, enojada, levantou-se da cama (...) antes de entrar na casa de banho, ouvira Fortunato gritar.
- Não te laves! Porra! Quero outro filho!
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Henrique Levy in "Praia Lisboa", Livros de Seda, Lisboa, 2010, pp 142 - 148.
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12/04/10
"Poema IV"
Que veut la Poésie
Qui dit
Sans vraiment dire
Qui dévoie la parole
Et multiplie l'horizon
Que cherche-t-elle
Devant les grilles
De l'indicible
Dont nous sommes
Fleur et racine
Mais jamais ne posséderons?
"Poema V"
Ainsi chemine
Le langage
De terre en terre
De voix en voix
Ainsi nous devance
Le poème
Plus tenace que la soif
Plus affranchi que le vent!
Andrée Chedid in "Rythmes", Éditions Gallimard,
Paris, 2003, pp 32 - 33.
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Que veut la Poésie
Qui dit
Sans vraiment dire
Qui dévoie la parole
Et multiplie l'horizon
Que cherche-t-elle
Devant les grilles
De l'indicible
Dont nous sommes
Fleur et racine
Mais jamais ne posséderons?
"Poema V"
Ainsi chemine
Le langage
De terre en terre
De voix en voix
Ainsi nous devance
Le poème
Plus tenace que la soif
Plus affranchi que le vent!
Andrée Chedid in "Rythmes", Éditions Gallimard,
Paris, 2003, pp 32 - 33.
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11/04/10
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então ele quer
vender
realismo com ilusões
eis-me
o mercado qual
a vossa função
expectadores onde os
reflexos as polinizações
recíprocas
narrativa dos desastres
são acasos
mal interpretados
figuras
deslocadas à procura
de realização a história
surpreendida em sua
solidão "are you for
real" sempre ele
e suas perguntas
produzir imagens
para esconder
presenças será este o
conceito de cindy
sherman ele
diz personalidade eu
digo relação entre más-
cara e cara
que pessoa que
nada
Ricardo Domeneck in " a cadela sem Logos", 7Letras e Cosac-Naify,
Rio de Janeiro e São Paulo, 2007, p 39.
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então ele quer
vender
realismo com ilusões
eis-me
o mercado qual
a vossa função
expectadores onde os
reflexos as polinizações
recíprocas
narrativa dos desastres
são acasos
mal interpretados
figuras
deslocadas à procura
de realização a história
surpreendida em sua
solidão "are you for
real" sempre ele
e suas perguntas
produzir imagens
para esconder
presenças será este o
conceito de cindy
sherman ele
diz personalidade eu
digo relação entre más-
cara e cara
que pessoa que
nada
Ricardo Domeneck in " a cadela sem Logos", 7Letras e Cosac-Naify,
Rio de Janeiro e São Paulo, 2007, p 39.
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10/04/10
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"Medo"
Furo-te os olhos com os dedos magoados
como-te
torpor de medo as luas verdes
mordem-me a boca
do teu peito sobe o halo nacarado
a essência fútil das flores mortas
e novamente o medo
de nunca mais voltar a ser perfeito
Rui Costa in "As Limitações do Amor São Infinitas",
Sombra do Amor Edições, s/c, 2009, p 44.
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"Medo"
Furo-te os olhos com os dedos magoados
como-te
torpor de medo as luas verdes
mordem-me a boca
do teu peito sobe o halo nacarado
a essência fútil das flores mortas
e novamente o medo
de nunca mais voltar a ser perfeito
Rui Costa in "As Limitações do Amor São Infinitas",
Sombra do Amor Edições, s/c, 2009, p 44.
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09/04/10
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Voler bene a una persona
è un lungo viaggio - -
rupi, cadute d'acqua e bui
improvvisi, dilatati
il chiuso di foreste,
lampi a volte
sul silenzio così vasto del mare
e strade sopraelevate, grida
viali immersi all'improvviso
in una luce sconosciuta.
Voler bene a uno, a mille, a tutti
è como tener la mappa nel vento.
Non ci si riesce ma il cuore
me l'hanno messo al centro del petto
per questo alto, meraviglioso fallimento.
Sugli altipiani di ogni notte
eccomi con le ripetizioni e le mani rovesciate della poesia:
non farli stare male, sono tuoi, non farli andare via.
Davide Rondoni in "Un bonheur dur", Cheyne Editeur,
Le Chambon-sur-Lignon, 2oo5, p 78.
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Voler bene a una persona
è un lungo viaggio - -
rupi, cadute d'acqua e bui
improvvisi, dilatati
il chiuso di foreste,
lampi a volte
sul silenzio così vasto del mare
e strade sopraelevate, grida
viali immersi all'improvviso
in una luce sconosciuta.
Voler bene a uno, a mille, a tutti
è como tener la mappa nel vento.
Non ci si riesce ma il cuore
me l'hanno messo al centro del petto
per questo alto, meraviglioso fallimento.
Sugli altipiani di ogni notte
eccomi con le ripetizioni e le mani rovesciate della poesia:
non farli stare male, sono tuoi, non farli andare via.
Davide Rondoni in "Un bonheur dur", Cheyne Editeur,
Le Chambon-sur-Lignon, 2oo5, p 78.
.
07/04/10
.
"Bar do Acaso"
Escrevo, decerto, por qualquer
razão inútil que não vais nunca entender.
Surgem as frases, vês, desconhecidos
que no bar do acaso encontro e são
as tuas mãos a escrever por mim.
Minto-lhes, digo que só te amo
a ti, eles riem e pedem-me pra ficar,
que sim, que a noite ainda é uma pequena
musa no breve altar venal do coração.
Fico. Dou à boca o jeito do cigarro
e é em fumo que transformo o corredor
de imagens, metáforas, pequenos desvios de
ritmo mais pobre ou queda sempre a pique
em sentido nenhum. Às vezes, sabes, é mais
difícil descobrir que o amor, como o cigarro,
quando se acende é que começa
a iluminar o fim.
Rui Costa in "As limitações do amor são infinitas",
Sombra do Amor Edições, s/c, 2009, p 26.
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"Bar do Acaso"
Escrevo, decerto, por qualquer
razão inútil que não vais nunca entender.
Surgem as frases, vês, desconhecidos
que no bar do acaso encontro e são
as tuas mãos a escrever por mim.
Minto-lhes, digo que só te amo
a ti, eles riem e pedem-me pra ficar,
que sim, que a noite ainda é uma pequena
musa no breve altar venal do coração.
Fico. Dou à boca o jeito do cigarro
e é em fumo que transformo o corredor
de imagens, metáforas, pequenos desvios de
ritmo mais pobre ou queda sempre a pique
em sentido nenhum. Às vezes, sabes, é mais
difícil descobrir que o amor, como o cigarro,
quando se acende é que começa
a iluminar o fim.
Rui Costa in "As limitações do amor são infinitas",
Sombra do Amor Edições, s/c, 2009, p 26.
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05/04/10
"para os verter na palavra. em mil sentidos."
.
"Poema 2 "
vários trilhos pelos passos construídos
fazem os lobos.
rasteiros
rente a desertos, à terra
domam o tacto à proximidade do solo.
a passagem é ligeira no horizonte:
matilha, mais que altiva, comprimida.
sisudos
solitários da montanha
são os olhos das pedras e do tempo
inesperados vultos dorsos ocultos
por raízes sarças e arbustos
guerreiros
os senhores da floresta
e do arco dos seus saltos em flecha
guardam clareiras e matas sombrias claras
entre garras dentes e o faro estridente.
vadios
são ladrões de quintais
e casas ciosas dos temperos.
lambem-se enquanto esperam para desfrutar
e desfrutam quando são os menos esperados.
urbanos
os visitadores de lixos
aprumam-se na arte do escutar
antes de se aproximarem com sacos
antes de abençoar o esbanjamento.
poetas, há,
lobos e lobas
os também mestres da natureza viva:
de olhar doce toque cativante
escutam, cheiram e lambem os sabores todos
para os verter na palavra. em mil sentidos.
Maria Toscano in "os lobos", Grácio Editor, Coimbra, 2010, pp 10 - 11.
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"Poema 2 "
vários trilhos pelos passos construídos
fazem os lobos.
rasteiros
rente a desertos, à terra
domam o tacto à proximidade do solo.
a passagem é ligeira no horizonte:
matilha, mais que altiva, comprimida.
sisudos
solitários da montanha
são os olhos das pedras e do tempo
inesperados vultos dorsos ocultos
por raízes sarças e arbustos
guerreiros
os senhores da floresta
e do arco dos seus saltos em flecha
guardam clareiras e matas sombrias claras
entre garras dentes e o faro estridente.
vadios
são ladrões de quintais
e casas ciosas dos temperos.
lambem-se enquanto esperam para desfrutar
e desfrutam quando são os menos esperados.
urbanos
os visitadores de lixos
aprumam-se na arte do escutar
antes de se aproximarem com sacos
antes de abençoar o esbanjamento.
poetas, há,
lobos e lobas
os também mestres da natureza viva:
de olhar doce toque cativante
escutam, cheiram e lambem os sabores todos
para os verter na palavra. em mil sentidos.
Maria Toscano in "os lobos", Grácio Editor, Coimbra, 2010, pp 10 - 11.
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03/04/10
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"Una felicità dura, di più generazioni"
Aveva dentro racconti di cose mai
viste, sfollamenti, ritorni
mancati e altri, misteriosi,
dai geli della Russia.
E anni senza marito, due figlie
appese al collo sulle navi
tra Genova e l'Etiopia.
Aveva dentro uno spartito
con mille note che io
non ho mai sentito, una gran
copia di emozioni che chi di noi
ha mai vissuto...
Aveva negli occhi il ridere
d'aver conosciuto il suo uomo
davanti alla gabbia dei conigli
in un mattino aspro e gentile
quando lui salutò con due battute
volgarotte e celestiali.
Il suo uomo grande
partito prima di lei, servito
come un re
e come un bimbo poi
accompagnato fino all'ombra.
In lei,
gran madre,
era ospitale
anche il vago cenno
erano vere le apprensioni
persino l'ira che pungeva
a volte in fondo agli occhi.
Por il mondo?
Sì, per quello.
Ad ospitare ogni cosa
si soffre, molto.
Ocorre
una felicità dura, di più generazioni.
Davide Rondoni in "Un bonheur dur", Cheyne Editeur,
Le Chambon-sur-Lignon, 2005, pp 20 - 22.
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(Nota - este é o primeiro de um ciclo de poemas
que Rondoni dedica à avó materna.)
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"Una felicità dura, di più generazioni"
Aveva dentro racconti di cose mai
viste, sfollamenti, ritorni
mancati e altri, misteriosi,
dai geli della Russia.
E anni senza marito, due figlie
appese al collo sulle navi
tra Genova e l'Etiopia.
Aveva dentro uno spartito
con mille note che io
non ho mai sentito, una gran
copia di emozioni che chi di noi
ha mai vissuto...
Aveva negli occhi il ridere
d'aver conosciuto il suo uomo
davanti alla gabbia dei conigli
in un mattino aspro e gentile
quando lui salutò con due battute
volgarotte e celestiali.
Il suo uomo grande
partito prima di lei, servito
come un re
e come un bimbo poi
accompagnato fino all'ombra.
In lei,
gran madre,
era ospitale
anche il vago cenno
erano vere le apprensioni
persino l'ira che pungeva
a volte in fondo agli occhi.
Por il mondo?
Sì, per quello.
Ad ospitare ogni cosa
si soffre, molto.
Ocorre
una felicità dura, di più generazioni.
Davide Rondoni in "Un bonheur dur", Cheyne Editeur,
Le Chambon-sur-Lignon, 2005, pp 20 - 22.
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(Nota - este é o primeiro de um ciclo de poemas
que Rondoni dedica à avó materna.)
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02/04/10
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"Poema XXXVII"
Nunca sabemos o nome dessa constelação
que nos cega. Como sonâmbulos, tateamos
o rumo dos meteoros, o luzir dessa sílaba
a amadurecer nossa humanidade. Jamais
conhecemos o segredo desse horizonte
que nos fecunda. Sem roteiros, sem mapas,
erramos por entre noites de profundo silêncio.
Nessa caminhada, sem paradeiro, sem itinerário,
as surpresas tatuam em nossos ombros
a fulguração das galáxias mais altas. É nossa
eterna sina talhar nos sonhos a rutilância
dos astros esquecidos. Nunca ouvimos
o acorde dessa estrela que nos esculpe.
Somente os milagres nos guiam, sempre,
rumo às nascentes de todas as palavras.
Alexandre Bonafim in "Sagração das despedidas", Biblioteca 24x7,
São Paulo, 2009, p 50.
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"Poema XXXVII"
Nunca sabemos o nome dessa constelação
que nos cega. Como sonâmbulos, tateamos
o rumo dos meteoros, o luzir dessa sílaba
a amadurecer nossa humanidade. Jamais
conhecemos o segredo desse horizonte
que nos fecunda. Sem roteiros, sem mapas,
erramos por entre noites de profundo silêncio.
Nessa caminhada, sem paradeiro, sem itinerário,
as surpresas tatuam em nossos ombros
a fulguração das galáxias mais altas. É nossa
eterna sina talhar nos sonhos a rutilância
dos astros esquecidos. Nunca ouvimos
o acorde dessa estrela que nos esculpe.
Somente os milagres nos guiam, sempre,
rumo às nascentes de todas as palavras.
Alexandre Bonafim in "Sagração das despedidas", Biblioteca 24x7,
São Paulo, 2009, p 50.
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01/04/10
.
" Deambulação e fuga "
.
Agora não. Agora esta impávida frieza a descer
as ruas. Este esmorecer da tarde nas aprazíveis
fachadas barrocas. O alinhamento das mesas,
sob as arcadas, ostensivamente esperando o nocturno
tumulto de nada. Agora as lojas, as rasgadas
montras, o néon. Agora o meu intento difuso -
tantos anos depois - a enviesar a rota para um encontro
de mim. Inevitável encontro (sem modas nem
circunstâncias) à revelia de tanta e tanta coisa,
sobretudo da memória; pegajosa fuligem a enegrecer
um desejo já morto, fantasias que também tive,
tão ridículas quanto inúteis. Agora eu - apenas;
esta alegria recuperada sem abastardamento
ou traiçoeira amarra sibilinamente a infiltrar-se,
como outrora. Eu a prosseguir, a saborear a Via
Roma no escondimento de passagens outras,
longínquas... Na Piazza San Carlo, Emanuel Filiberto,
de cima do pedestal, parece reconhecer-me. Ou talvez
enfadar-se. Nem eu sei bem! Santa Cristina, desta vez
sem as coisas dos restauros, oferece-me as portas
abertas com parcimónia. Mas eu fico - cruzamento
de cultos e sentires ao arremedo de mim. Fico
e a cidade acolhe-me como um imenso regaço,
um aconchego de vozes a incitar voos. Agora não.
Agora é tarde. Demasiado tarde. É tempo de te arrancar
à volátil orgânica da fala. De te excluir. De te
dissolver no ar como barca de vento à deriva.
E depois, após tão justo feito, regressar a casa
como se nunca nada tivesse acontecido.
.
Victor Oliveira Mateus in "Regresso", Editora Labirinto, Fafe, 2010, p 16.
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" Deambulação e fuga "
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Agora não. Agora esta impávida frieza a descer
as ruas. Este esmorecer da tarde nas aprazíveis
fachadas barrocas. O alinhamento das mesas,
sob as arcadas, ostensivamente esperando o nocturno
tumulto de nada. Agora as lojas, as rasgadas
montras, o néon. Agora o meu intento difuso -
tantos anos depois - a enviesar a rota para um encontro
de mim. Inevitável encontro (sem modas nem
circunstâncias) à revelia de tanta e tanta coisa,
sobretudo da memória; pegajosa fuligem a enegrecer
um desejo já morto, fantasias que também tive,
tão ridículas quanto inúteis. Agora eu - apenas;
esta alegria recuperada sem abastardamento
ou traiçoeira amarra sibilinamente a infiltrar-se,
como outrora. Eu a prosseguir, a saborear a Via
Roma no escondimento de passagens outras,
longínquas... Na Piazza San Carlo, Emanuel Filiberto,
de cima do pedestal, parece reconhecer-me. Ou talvez
enfadar-se. Nem eu sei bem! Santa Cristina, desta vez
sem as coisas dos restauros, oferece-me as portas
abertas com parcimónia. Mas eu fico - cruzamento
de cultos e sentires ao arremedo de mim. Fico
e a cidade acolhe-me como um imenso regaço,
um aconchego de vozes a incitar voos. Agora não.
Agora é tarde. Demasiado tarde. É tempo de te arrancar
à volátil orgânica da fala. De te excluir. De te
dissolver no ar como barca de vento à deriva.
E depois, após tão justo feito, regressar a casa
como se nunca nada tivesse acontecido.
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Victor Oliveira Mateus in "Regresso", Editora Labirinto, Fafe, 2010, p 16.
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