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Hoje a cor é o roxo
de mosto
sobre tudo passando repassando em piedosa impiedosa velatura
Das grades dos portões feitas de chuva e vento
goteja mudo um sarro de desgosto
anónimo ulcerante
e ecoante em sobressaltos glaucos de roer
as unhas e tudo o que acontece e não devia talvez acontecer
uma palavra um gesto um compromisso
um sarro
que não deixa esquecer ou então recomeçar retroceder
a uma paz anterior que nunca houve mas ao menos se imagina
e só imaginá-la um minuto muda o roxo em rosa neutro inofensivo
um sarro
que não deixa apagar lavar raspar este hoje-roxo que tudo mancha e contamina
um sarro-chaga de raiva e sofrimento
de
que
pinga
um esverdeado pus que a vida toda mina de obsessivo
remorso que supura
e não é bem isso
Mário Dionísio in "poesia incompleta", Publicações Europa-América,
Mem Martins, 2ª edição, pp 343 - 344.
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