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" Deambulação e fuga "
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Agora não. Agora esta impávida frieza a descer
as ruas. Este esmorecer da tarde nas aprazíveis
fachadas barrocas. O alinhamento das mesas,
sob as arcadas, ostensivamente esperando o nocturno
tumulto de nada. Agora as lojas, as rasgadas
montras, o néon. Agora o meu intento difuso -
tantos anos depois - a enviesar a rota para um encontro
de mim. Inevitável encontro (sem modas nem
circunstâncias) à revelia de tanta e tanta coisa,
sobretudo da memória; pegajosa fuligem a enegrecer
um desejo já morto, fantasias que também tive,
tão ridículas quanto inúteis. Agora eu - apenas;
esta alegria recuperada sem abastardamento
ou traiçoeira amarra sibilinamente a infiltrar-se,
como outrora. Eu a prosseguir, a saborear a Via
Roma no escondimento de passagens outras,
longínquas... Na Piazza San Carlo, Emanuel Filiberto,
de cima do pedestal, parece reconhecer-me. Ou talvez
enfadar-se. Nem eu sei bem! Santa Cristina, desta vez
sem as coisas dos restauros, oferece-me as portas
abertas com parcimónia. Mas eu fico - cruzamento
de cultos e sentires ao arremedo de mim. Fico
e a cidade acolhe-me como um imenso regaço,
um aconchego de vozes a incitar voos. Agora não.
Agora é tarde. Demasiado tarde. É tempo de te arrancar
à volátil orgânica da fala. De te excluir. De te
dissolver no ar como barca de vento à deriva.
E depois, após tão justo feito, regressar a casa
como se nunca nada tivesse acontecido.
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Victor Oliveira Mateus in "Regresso", Editora Labirinto, Fafe, 2010, p 16.
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