09/10/12

Acerca de uma conversa...



 De três apontamentos a lápis que Oliveira Martins inseriu neste lugar acerca da suposta tentativa de envenenamento de D. João II em Évora, no ano de 1490, parece inferir-se que o seu espírito se inclinava a reconhecer-lhe a existência, o que aliás ele indica também, e de modo mais explícito, comentando o material coligido para o capítulo XII, em que teria de referir a morte do Rei em Alvor. Menciona o passeio à herdade da Fonte Coberta, situada a meia légua de Évora. Indica "a vingança, o natural desejo de libertação do jugo, como móbil do crime". O rei visitara a sua fonte predilecta e aí bebera um púcaro de água. Regressando a Évora logo sentira vómitos, enfartamento e laxidão intestinal. Medicaram-no e melhorou.
Passados dias sofrera novo insulto de que chegou a recobrar-se, mas saúde nunca mais tivera.
"Três fidalgos que haviam bebido da mesma água todos morreram de iguais ânsias e disenteria." (Nota a lápis de Oliveira Martins).
Oliveira Martins recorda também o que escrevera D. Agostinho Manuel afirmando: "(...) que D. Manuel duque de Beja, irmão da Rainha e do duque de Viseu, nas festas de Évora fora desconsiderado pelo rei seu cunhado, que o não extremou dos demais fidalgos, quando ele era o segundo herdeiro presuntivo do trono; e que estava a pé, como criado, atrás da princesa noiva, e que tudo sofreu com paciência e medo, lembrando-se do trágico fim de seu irmão."
Lembra igualmente a opinião de Camilo, que nos seus Narcóticos sugere a ideia "de que o envenenamento tivesse sido praticado por ordem ou indicação de quem humanamente mais tinha a lucrar com ele", e por fim parece querer lançar suspeita sobre o médico de D. João II. João da Paz, acerca do qual "os cronistas do Rei não falam, mas que vivia na intimidade dos irmãos do assassinado Duque de Viseu". (Nota a lápis de Oliveira Martins).

  Martins, Oliveira. O Príncipe Perfeito. Lisboa: Guimarães Editores, 1984, pp CXX - CXXI.

(...) D. Álvaro de Portugal e D. Francisco de Almeida, intrigavam em Portugal a favor de D. Manuel e alimentavam o espírito de vingança e de rebeldia da nobreza contra D. João II. Ressentido este, recorreu mais uma vez ao antigo expediente de redobrar de atenções e pôr em evidência a Excelente Senhora, dirigindo-se de Torres Vedras a Santarém com o fim de visitá-la, e procedendo nessa viagem com precipitação tal, que dera azo aos mais variados juízos e aventurosas suposições.
Aproximava-se no entanto, e a passos rápidos, o desfecho. A rainha D. Leonor não se demovia (...) Prosseguia a doença do Rei sem alternativas. Permitiu-lhe uma destas dar à esposa uma demonstração de afecto, seguindo em uma só noite de Alcochete, onde estava, para Setúbal, apenas tivera notícia de que a soberana enfermara gravemente naquela vila. Ali foi encontrar a infanta D. Beatriz, mãe da Rainha, e o Duque de Beja, e com ambos partilhou os desvelos e cuidados pela enferma.
Em fins de 1494 era já tamanho o enfraquecimento do Rei que lhe não consentia assinar o despacho, e as suspeitas de envenenamento tornaram por isso a acentuar-se mais e mais (...) A hipótese do envenenamento seria aqui discutida largamente, e, como já tivemos ocasião de o expor, pode afirmar-se que para ela propendia o ânimo de Oliveira Martins. As razões políticas que imperavam na mente da família e dos partidários de D. Manuel, as práticas do tempo, os próprios sintomas das sucessivas enfermidades do Rei, tudo o dispunha a crer que, por duas vezes pelo menos, a arma traiçoeira do veneno fora vibrada para resolver tão intrincada situação política, afastando de vez um obstáculo aliás invencível, e vingando na pessoa do Rei as mortes de tantos Príncipes e de fidalgos tão ilustres.
Coligindo diligentemente quanto em Resende , em Rui de Pina, em Damião de Góis e em Vasconcellos, se encontra disperso sobre os sintomas que acompanharam a enfermidade e morte de D. João II, Oliveira Martins consultou acerca de assunto tão espinhoso, mas tão palpitante de interesse, o dr. Manuel Bento de Sousa. Por mais de um motivo julgamos dever consignar aqui a opinião exarada pelo doutíssimo clínico (...) São duas cartas do dr. Manuel Bento de Sousa dirigidas a Oliveira Martins sobre o assunto (...):
(...) D. João II adoece de repente com sintomas de envenenamento, ânsias, vómitos e outros fluxos. Adoecem na mesma ocasião três familiares seus, com os mesmos sintomas, e morrem soltos. Levanta-se então a suspeita da peçonha, e o mesmo rei a tem. Este salva-se, mas dentro de quatro anos repetem-se os sintomas várias vezes - isto é: novas doses de veneno, a que por fim sucumbe.
O cadáver, tornado um armazém de arsénico, ou qualquer metal de semelhante acção, conserva-se incorrupto por este embalsamamento, e desenterrado em tempo de D. Sebastião, e, se não me engano, ainda outra vez mais tarde, aparece sempre inteiro.
Proclama o povo que o rei foi santo, e por duas razões o foi - por estar inteiro e por fazer milagres. Curiosa evidência! Os milagres consistiam em se curarem maleitas com a terra da sua sepultura, sendo hoje de todos sabida a poderosa virtude do arsénico contra sezões
Esta demonstração muito boa à l'usage des gens du monde, tem só um defeito: desfaz-se toda em um médico lhe tocando.
Os sintomas da doença são comuns a outras moléstias, e podem muito bem ser os de uma simples indigestão, e muitas indigestões devia haver naqueles banquetes das festas do casamento do Príncipe onde foi tal a comezaina(...) Depois, o arsénico, se alguma vez tem determinado a conservação post mortem dos corpos envenenados, tem sido por excepção. Não só, na grande maioria, apodrecem os mortos por veneno, mas há fora do envenenamento outras condições, que mais e muito facilitam a conservação.
O milagre da cura das maleitas também ao arsénio não pode ser atribuído. Por muito tóxico, que no corpo do rei houvesse, não podia ele existir na terra da sepultura, visto que na terra se não desfizera o cadáver.
Aquela demonstração não tem portanto valor dentro da medicina, mas tem-na fora dela, uma vez que haja o cuidado de peneirar as provas, para ficar com as boas, deitando fora as que não prestam.
Assim, pois, digo eu D. João II foi envenenado, fundando-me nos seguintes argumentos:
1º Considerando os factos, as pessoas e a época, deve ter-se dado o envenenamento (...) Os ódios abrasavam os parentes, as ambições separavam os mais chegados, e no mesmo paço rei e rainha, defendendo interesses opostos do seu sangue, a tal ponto se aborreceram que a rainha ainda foi mais dura do que o rei. Quando a rainha esteve às portas da morte em Setúbal, o marido correu para junto dela, mas quando o rei caiu para sempre em Alvor, a esposa não apareceu à sua cabeceira
(...)Numa luta assim, o veneno não podia ser para eles uma torpeza. Era um meio como outros, superior ao punhal por ser mais secreto...
2º Os sintomas e outras circunstâncias do primeiro ataque da última doença, levam a acreditar no envenenamento. Os sintomas, disse eu, podiam  até ser de uma indigestão. É certo, mas certo é também, que sendo quatro os casos, e havendo três mortos, são mortos de mais para indigestões. Do mesmo modo, quatro casos de ânsias, vómitos e outros fluxos, dando três mortes, e não sendo seguidos de outros casos e outras mortes no séquito real, são de menos para uma epidemia, são de mais para doença esporádica, e são bastantes para envenenamento.3º (...) A descrição dos últimos sofrimentos, embora lacónica, é suficiente para se ver que o rei sucumbiu a uma anasarca com perturbações cardíacas. A acção do arsénico, e análogos, em doses lentas ou repetidas, causa a degeneração gorda do coração e outras vísceras, sobrevindo-lhe a anasarca.
4º Sucessos posteriores à morte de D. João II reforçam a hipótese de envenenamento.
Falecido D. João II, D. Manuel, com desprezo de uma das cláusulas testamentárias de seu cunhado, chamou ao reino os desterrados, engrandeceu-os, e fez mercês a diversos, entre os quais aparece nobilitado um judeu suspeito, de cuja família Camilo Castelo Branco se ocupa largamente, dando em comprovação do envenenamento um argumento, que de entre todos fixei por importante.
(...) Ora este mestre João, mestre de D.João II, que foi o seu padrinho de baptismo e na pia lhe deu o seu nome, não figura entre os assistentes de D. João II, está ao serviço da rainha e vê-se mais tarde, que tem correspondências melindrosas com altos personagens, mas vive sempre obscuro, até que de repente o sucessor de D. João II o nobilita, mal sobe ao trono, institui-lhe morgado, dá-lhe o apelido de Paz (...) Nota Camilo, e com razão, que D. Manuel, apesar de encher o mestre João da Paz de tantos favores e proteger-lhe os filhos todos, não o quisesse contudo para o seu serviço, sendo também muito notável, acrescento eu, que pelo contrário para o seu serviço quisesse a outros servidores do seu antecessor e primeiro que todos a Antão Faria, o mais querido confidente de D. João II (...) Quer-me parecer que D. Manuel distinguia assim entre o médico devasso e judeu desleal que se prestara a ser o técnico do envenenamento, ao qual devia o trono, e o servidor honrado (...) Eis as razões, que me levam a acreditar no envenenamento e a suspeitar de mestre João da Paz. Estas razões, está bem de ver tiram o maior valor do seu conjunto. De V.Exa. M. Bento de Sousa.
 A atitude de D. Manuel, se por um lado encontra explicação no receio e na prudência, por outro não deixa de tornar-se suspeitosa. Analisá-la-ia Oliveira Martins traçando aqui um perfil do Rei Venturoso  (...) sem que provavelmente, a memória desse soberano houvesse muito a ganhar ao ser reavivada pelo seu novo biógrafo.

   Martins, Oliveira. O Príncipe Perfeito. Lisboa: Guimarães Editores, 1984, pp CLIX - CLXV.

Nota -
a) este poste vem na sequência de uma conversa havida no Face e onde eu cometi uma imprecisão: quando João II está agonizando é este que chama a mulher e o cunhado (e primo) ao Alvor. Não é a rainha que chama João II! O meu erro deve-se ao facto de ter lido as Crónicas de Garcia de Resende e de Rui de Pina há muito muito tempo e, como é óbvio, haver muita coisa de que já não me recordo.
b) esta obra de Oliveira Martins é, como se sabe, um conjunto desarticulado de notas, cartas e excertos posteriormente organizados, pois o escritor nunca chegou a concluir o livro.
c) neste texto existem também algumas passagens que me levam a suspeitar que o príncipe herdeiro (o infante D. Afonso) foi também assassinado, mas são exactamente os mesmos excertos que eu já lera em Garcia de Resende e que continuo a achar muito estranhos: a troca da mula pelo ginete, o facto deste se ter espantado com o que lhe apareceu subitamente à frente e, sobretudo, o interesse que os partidários do futuro D. Manuel teriam na morte do herdeiro do trono, mas isto são apenas intuições de quem desconfia de rancores antigos, de sede de vinganças e dos interesses que estavam ali em jogo.
d) Nestas páginas há também uma segunda carta de Bento de Sousa para Oliveira Martins onde se fala da figura de João da Paz, distinguindo-o de outras personagens com nomes semelhantes que existiram nesse momento histórico e refere-se a uma eventual confusão feita por Camilo Castelo Branco acerca deste tópico, mas não me parece importante, para o assunto, falar disso aqui no poste.
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